domingo, maio 27

domingo, fevereiro 6


O DIONISÍACO NA PERSONAGEM DEAN MORIARTY EM ON THE ROAD, DE JACK KEROUAC






Nelson Alexandre*
                                

1. GERAÇÃO BEAT? POR ZEUS, QUE LIRA IMPROVISADA É ESSA?


A Geração Beatnik foi um dos mais controversos movimentos que o século XX viu e ouviu, e veio ao mundo pelas mãos de seu principal avatar, o escritor norte-americano de origem franco-canadense, Jack Kerouac (1922 -1969). Mas é importante salientar que a prosa espontânea, elemento que funcionava como espinha dorsal para tal movimento, já gestava na felpuda barba branca do poeta também norte-americano Walt Whitman, considerado o primeiro dos beatniks.
Sua obra Folhas das Folhas da Relva (que passaria praticamente toda a sua vida escrevendo e reescrevendo) já remetia metaforicamente a condição subterrânea que esse tipo de literatura viria a desencadear e expor ao restante do cânone estabelecido e já consagrado por uma grande fatia do público e da crítica.
Folhas das Folhas da Relva nos dá uma visão de que existe uma outra linha coletiva abaixo das folhagens da relva, que já por si mesma, está muito mais próxima do chão, do solo empoeirado e pedregoso das artes, em especial, a linha nem sempre racional e metrificada da poesia que não obedecia às formas fixas.
Tomando essa linha de raciocínio, o movimento Beatnik ou Beat, espelhou-se não só nessa concepção de arte “maldita”, fadada a pequenos espaços escuros e enfumaçados por onde seus protagonistas e admiradores povoavam carregados de um individualismo radical que inconscientemente ir-se-ia tomando forma de coletividade, de bando, de horda, principalmente por minorias que não podiam desempenhar suas manifestações no âmbito artístico, intelectual, moral e sexual, pois não compartilhavam da mesma opinião com a sociedade vigente, mas também, por uma necessidade de incorporar uma filosofia de vida, que essa sociedade vigente e já citada, queria pisar com um coturno pesado, pronto a destinar ao limbo as pequenas “Dramatis Personae” (Bivar, 2004) que povoavam essa “grama” indesejada e amoral.
Podemos destacar outra obra que serviu de incentivo e semente para que essa trupe de novos poetas e escritores tomasse como modelo para a criação de suas respectivas obras. Memórias do Subsolo, de Fiódor Dostoéviski, era sempre citada por seus idealizadores como um marco da inconformidade individual diante de um mundo frio e racional. Segundo Soares (2008), a obra é dividida em duas partes distintas, e seu criador utiliza um personagem-narrador que narra suas desventuras na primeira pessoa do singular, através de suas reminiscências e auto-análise, além disso, há uma diferença de linguagem nessas duas partes distintas, mais explícita na segunda parte, com a utilização de elementos informais como: linguagem popular, informal falada, palavras depreciativas, diminutivos, aumentativos, frases feitas e marcadores discursivos conversacionais.
 Naquela época eu tinha apenas vinte e quatro anos. Já então minha vida era sombria e desordenada, eu era solitário como um bicho do mato. Não tinha amizades, até mesmo evitava falar com as pessoas, e cada vez me enfurnava mais no meu canto. Durante o trabalho na repartição, procurava inclusive não olhar para ninguém e percebia nitidamente que meus colegas não só me consideravam excêntrico como também - assim me parecia constantemente – olhavam-me com uma certa repulsa. (Dostoiévski, p.54)

Na obra de Jack Kerouac, esses elementos estarão mais presentes em On The Road, do que em sua primeira obra publicada, The Town And The City. Este romance, originalmente publicado em meados de março do ano de 1950, ainda tinha muitas “amarras” com o romance tradicional e sutilezas eufemismadas que, posteriormente, darão lugar ao som da urbe, ao palavreado dos guetos e variantes lingüísticas que nem sempre estarão de mãos entrelaçadas com a norma culta de sua língua original de criação.
Destacamos até aqui um dos nomes principais dessa geração de anjos caídos dos altos arranha-céus nova-iorquinos, juntamente com dois expoentes da literatura universal, que serviram de espelhamento para a futura produção desse grupo. Porém, a geração beat não ficará estancada apenas com o nome de Kerouac, antes mesmo de o autor utilizar a palavra beat em sua obra, um vagabundo viciado chamado Herbert Huncke que perambulava pela Times Square com uma pilha de livros debaixo da axila e em constante viagem de um entorpecente denominado benzedrina, vivia repetindo para si e para os transeuntes: “Man, I’m beat”.
 Este primeiro sentido etimológico da palavra “beat” dava uma significação de “derrubado” “abatido” “tombado”, mas depois houve outras significações para a palavra. Beat também é o radical da palavra beatitude, que dava um enfoque místico e santificado ao movimento. Algo como anjos “sujos” (sem pejorativos, claro), santos franciscanos que compartilhavam desde idéias e drogas, até pensamentos e desejos realizados ou não. Beat também tinha ligação com a batida do som Be-bop, estilo musical do final dos anos 40 que destacava dois nomes de peso como Charlie Parker e Dizzy Gillespie.
Há de se destacar que após o lançamento do satélite russo Sputnik ao espaço, em 1957, ano também da publicação de On The Road, houve a junção do radical “beat” com o sufixo “nik”, formando a palavra “beatnik”, fazendo alusão de que os componentes dessa geração eram indivíduos que viviam fora desse mundo. É claro que por parte de algumas instituições de ensino e professores dos Estados Unidos, que torciam o nariz para essa nova tendência, aproveitaram para depreciar tal junção para criarem outra de explícito tom depreciativo como “madniks”.
Segundo Bivar (2004), o movimento Beat teve seu marco inicial no apartamento da primeira mulher de Kerouac, Edith Parker. Foi nesse apartamento que os outros nomes significativos do movimento se encontraram pela primeira vez. Eram eles: Allen Gisnberg (1926 – 1998) autor do poema Uivo, publicado originalmente em 1956 e William S. Burroughs (1914 – 1998), autor de uma obra que até os dias hoje é de difícil compreensão semântica, intitulada Almoço Nu.
No quesito publicação, The Town And The City, mesmo sendo o primeiro livro de um componente da geração beat a ser publicado, não ficou com o mérito de ser a primeira obra desse movimento a vir à luz do mundo. De acordo com Brinkley (2006), essa láurea não-acadêmica foi ofertada para uma figura que ficaria, mais tarde, em segundo plano, e que no ano de 1952, em 16 de novembro, para ser mais exato, foi o autor de um famoso ensaio “Esta é a Geração Beat”, publicado originalmente na The New York Times Magazine e que se chamava John Clellon Holmes.
O artigo ainda não daria status a John como autor da primeira obra beat publicada nos Estados Unidos, mas faria com que o país, e mais tarde o planeta, soubesse da existência desse pequeno grupo que “pipocara” no mundo das artes e que parecia mais um convidado indesejado pelo resto do setor acadêmico e cultural da terra do tio Sam. Holmes, que não era exatamente um beat, mas sim um simpatizante que vivia entre os principais nomes dessa geração, receberia US$ 20 mil de uma editora para escrever um livro sobre a Geração Beat e que nasceria com o título de “Go”. Mas a obra, depois de publicada, segundo Bivar (2004) era mais o trabalho de um observador distante do que de um participante introduzido no coração do movimento.
Mas o que realmente importa é que, obra de observador ou de participante, a história deu a Jonh Clellon Holmes o legado de precursor da primeira publicação da Geração Beat. Ambos, livro e ensaio fizeram com que o movimento tivesse um boom e ganhasse uma atenção maior por parte de admiradores e oposicionistas.
Kerouac sentiu-se injustiçado, pois achava que On The Road era a obra que merecia tais confetes nesse novo carnaval do mundo literário, mas mal sabia ele, que os deuses guardavam para o futuro algo que não ficaria apenas no espaço apertado e triste do seu coração. Ele viria a ser o ícone de toda uma geração órfã e rejeitada por aqueles que não queriam ver o status quo maculado. Como um enorme risco de ponta a ponta na lataria de um Hudson cheirando a conservadorismo.


2. NA ESTRADA DE ON THE ROAD: SINOPSE SOBRE O ROMANCE E CONTEXTUALIZAÇÃO DAS PERSONAGENS DEAN MORIARTY E SAL PARADISE

O enredo do romance enfoca a história de um jovem escritor, o protagonista Sal Paradise, de vinte e cinco anos de idade, que mora com a tia num pequeno apartamento do outro lado da ponte da ilha de Manhatan. Paradise, que recentemente havia perdido a esposa, em conseqüência de uma súbita traição, começa a conhecer o estilo livre e espontâneo de escrita em algumas cartas de um jovem muito entusiasmado chamado Dean Moriarty, que mora na cidade de Denver, no Estado americano do Colorado, e que passara algum tempo num reformatório por ter roubado dezenas de carros por pura diversão. Roubava-os e os dirigia até que o tanque de combustível ficasse perto do final, para depois “devolvê-los” para seus respectivos donos, abandonando-os perto de onde ele já os havia pegado.
As cartas falavam a respeito de como ele estava entusiasmado com a leitura que vinha fazendo em relação ao escritos de Nietzsche. Paradise, junto com seus amigos Chad King e Carlo Marx, também entusiasmados com o estilo singular do jovem Dean Moriarty, ficam sabendo de que ele havia saído do reformatório e que viria para Nova Iorque encontrar-se com seus heróis, especialmente, Sal Paradise, que Dean acredita ser o novo amigo que o transformará em um escritor.

 (...) No bar eu disse: “Porra, cara, sei muito bem que você não me procurou só porque tá a fim de virar escritor e, afinal de contas, o que é que eu posso te dizer sobre isso a não ser que você tem que mergulhar nessa onda com a mesma energia com que um viciado se droga?” (p. 20).

A partir desse encontro, a vida de Paradise cai literalmente na estrada. Serão várias viagens cortando os Estados Unidos da costa leste a oeste, com e sem Dean, e fazendo várias paradas nessa cruzada pelo país, utilizando todas as formas de transporte possíveis: vagões de trem de carga, caminhões, ônibus, carros roubados e caronas em carros velhos e novos. Em algumas dessas paradas, a personagem se vê diante de profundas reflexões a partir de observações de momentos congelados que aos olhos comuns poderiam passar como banais.

Os pisos das estações rodoviárias são exatamente iguais pelo país inteiro, sempre recobertos de baganas e catarros, e eles provocam uma melancolia profunda que só mesmo as rodoviárias poderiam possuir. (p.54).


O romance aborda o senso de individualismo dessas personagens, mesclado a um pensamento de irmandade por afinidade ao estilo livre de vida, afinidade com o gosto musical, e a forte relação de ruptura com um modelo de vida tradicional que por parte dos Beats era enfadonha, desvinculada de reflexões que não fossem de apego ao material, que rejeitavam o afloramento subterrâneo de uma poesia “automatista” e verborrágica e que contribuía para a subsistência cotidiana que as pequenas personagens secundárias da vida interpretam todos os dias, em contraponto às pessoas que levam uma vida perigosamente autêntica num mundo cada vez mais competitivo e que doutrina o ser desde os primeiros contatos com a realidade que encaramos para podermos sobreviver todos os dias, todas as semanas, todos os meses e anos de uma existência pautada em um modelo fixo de crença, comportamento e opinião.
As personagens caminham numa estrada que tem uma placa de indicação que remete aos protagonistas encontrarem a essência da vida autêntica, formando o clã excluído que está se constituindo como uma sociedade alternativa no seio de uma sociedade tradicional e formal.

Mas nesta época eles dançavam pelas ruas como piões frenéticos e eu me arrastava na mesma direção como tenho feito toda a minha vida, sempre rastejando atrás de pessoas que me interessam, porque, para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo, aqueles que nunca bocejam e falam chavões, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício explodindo como constelações em cujo centro fervilhante pop pode-se ver um brilho azul e intenso até que todos caiam no “aaaaaaah!” (pág. 22).

O estilo e a velocidade na criação das obras por Kerouac, que por muitas vezes eram movidos à bebida, cigarros e drogas, e embalados pelo som fervilhante do Jazz e do Be-Bop, tinham uma ligação muito forte com a percepção auditiva dessas tendências musicais e do automatismo dos escritores e pintores surrealistas.
Kerouac mantinha-se como o saxofonista na sua base constante de improviso metafórico. Conforme salienta Bueno (1997), o mais irônico é que, na verdade, Kerouac desenvolveu esse estilo – o estilo beat por excelência: laudatório, verborrágico, impressionista, vertiginoso, incontido, “espontâneo”, repleto de sonoridade, de gíria, de coloquialismo e de aliterações – a partir das cartas que recebeu de Neal Cassady, em quem se espelhou para poder criar a personagem Dean Moriarty.

Os rapazes no Loop seguiam soprando, mas com um ar fatigado porque o bop estava em algum ponto entre o período ornitológico de Charlie Parker e a nova era que se iniciaria com Miles Davis. E enquanto eu sentava ali ouvindo aquele som noturno que o bop viera representar para todos nós, pensei nos meus amigos espalhados de um canto a outro da nação e em como todos eles viviam frenéticos e velozes dentro dos limites de um único e imenso quintal. (pág.29).

O enredo de On The Road baseia-se não só em aventuras pelos submundos da música, da prostituição, das drogas, do prazer efêmero e da inquietude que fazia com que os hormônios e neurônios dos jovens estivessem borbulhando como as febris notas do Be-bop enlouquecido numa atmosfera coberta de luz néon e anúncios luminosos de cerveja em noites regadas à conversas sobre filósofos e escritores que embasavam suas ações reais e criações ficcionais, mas também, sobre os elementos imagísticos e poéticos do interior dos pequenos centros fora das megalópoles como Nova Iorque e São Francisco.

Port Allen – onde o rio é uma chuva de rosas sob uma escuridão nebulosa e insignificante, onde entramos numa estrada sinuosa sob o fogo amarelado, onde, de repente, numa volta, vislumbramos o visco vulto volátil escoando suas águas sob a ponte e cruzamos mais uma vez a eternidade.  (pág. 29).



3. “DEANONISÍACO” HIBRIDISMO QUE REMETE A UM ENCONTRO DA TRADICÃO GRECO-ROMANA E A CONTRACULTURA BEATNIK DO SÉCULO XX

Jack Kerouac afirmou que a Geração Beat era um movimento Dionisíaco, a partir do momento em que teve consciência do sentido genealógico que essa afirmação criaria para os componentes do movimento.
 Quando se manifestou dessa maneira, o escritor plantou uma semente de inocência em seu coração, e o suco que escorria dessa videira entrelaçada em suas coronárias fez com que seus seguidores ficassem, como afirma Brandão(1997), num pé de parentesco com os Sátiros e as Ninfas, dançando vertiginosamente ao som dos címbalos, tendo ao invés de Dioniso no centro, Dean Moriarty, e no lugar dos instrumentos utilizados pelo cortejo de Dioniso, a Geração Beat utilizaria bateria, contrabaixo, saxofones, trompetes e pianos com teclados alucinantes e notas que seguiam dentro de um improviso de tom único na base, e polissêmico nas significações que irradiaria a partir desse núcleo sonoro que penetraria a mãe Terra, despertando os ouvidos dos habitantes do Hades.

O piano lançou um acorde. Sua boca estremeceu, ele nos encarou, Dean e a mim, com uma expressão que parecia querer dizer: Ei rapazes, o que estamos fazendo nesse mundo de merda? – e então chegou ao fim da canção, mas para isso teve que fazer umas preparações intrincadas, um final elaborado durante o qual poder-se-ia enviar todas as mensagens jamais sonhadas, para Garcia,  umas doze vezes em torno do mundo, mas que diferença isso fazia para todos os outros? Porque no fim das contas ali estávamos nós, transando com o inferno e com a amargura de nossa própria e exausta vida beat nessas horrorosas ruas do homem. (pág. 246).

Outra relação entre o deus grego e a personagem norte-americana Dean Moriarty permeiam o mito do surgimento de Dioniso. Conforme afirma Commelan, Dioniso era filho de Zeus e Sêmele, princesa tebana, filha do rei Cadmo. Como acontece com todas as amantes de Zeus, Hera enciumada se disfarça de sua ama, aconselhando Sêmele a pedir que Zeus aparecesse na sua forma divina.
A moça assim o faz e Zeus não pode negar esse pedido. Ao aparecer em sua forma divina, o deus emitiu raios e relâmpagos, incendiando o palácio e a pobre moça. Mesmo Sêmele estando em chamas, Zeus conseguiu retirar de seu ventre o bebê, acabando por gerá-lo em sua própria coxa. Ao longo de toda a juventude de Dioniso, teve que ser protegido da ira de Hera, ficando, também, afastado do Olimpo.
A personagem Dean Moriarty, segundo o narrador-protagonista Sal Paradise, também se vê órfão de mãe e a figura paterna é uma espécie de personificação dos bares de sinuca de Denver, que espera pelos trocados que o adolescente Moriarty arrecada com outros fregueses para que o velho Moriarty, o pai, possa beber a sua próxima garrafa de vinho. Além do fato de Dean não pertencer a qualquer árvore genealógica com algum direito a honrarias régias. Ambos, Dean e Paradise, são pessoas errantes em uma América que ainda não conhece num todo, seus próprios mitos e lendas. Dioniso, por influência da vingativa Hera, também é fadado a uma existência de “porto em porto”, quase que enlouquecido. Deus do vigor e da agricultura, do torpor do vinho e lascívia entre as mulheres. Erupção de um vulcão caucasiano, nada mais propondo, a não ser, liberar a alegria junto a seu cortejo e o prazer da música e da dança.
Assim também é Dean, não só para Kerouac, mas para todos os principais nomes da Geração Beat. Ícone longínquo. Preso a um plano de originalidade autoral. Peça apolítica como Dioniso. E defensor da política da libertação. Arte focada em si, que irradia alegria para seus convivas, como os primeiros raios de sol sobre a videira. 
Príapo da costa leste a costa oeste. Diferente apenas por não ser imortal. Sua imortalidade descende das linhas verborrágicas desse romance empoeirado, que cheira a pores de sol e poentes nos desertos da solidão humana condicionada a uma espécie de semidescendência da imortalidade cultuada por seus seguidores e admiradores. Ignorado por muitos. Lembrado por poucos que valem muito.

*Porfessor,Poeta e Escritor

Nota : Jack Kerouac escreveu  “On The Road”, livro que seria consagrado mais tarde como a “bíblia hippie”, em apenas três semanas. O fôlego narrativo alucinante do escritor impressionou bastante seus editores. Jack usava uma máquina de escrever e uma série de grandes folhas de papel manteiga, que cortou para servirem na máquina e juntou com fita para não ter de trocar de folha a todo momento. Redigia de forma ininterrupta, invariavelmente sem a preocupação de cadenciar o fluxo de palavras com parágrafos.
O material bruto que chegou às mãos de Malcom Cowley, da editora Viking Press, em 1957, deu trabalho. Os rolos quilométricos de texto tiveram de ser revisados, foram inseridos pontos e vírgulas e praticamente 120 páginas do original foram eliminadas. O estilo-avalanche de Jack tinha ainda um elemento intensificador. Ao contrário às idéias correntes, que trabalhou em cima do livro sob o efeito de benzedrina, uma droga estimulante, Kerouac, em admissão própria, abasteceu seu trabalho com nada mais que café.

O DIONISÍACO NA PERSONAGEM DEAN MORIARTY EM ON THE ROAD, DE JACK KEROUAC

Nelson Alexandre
                                

1. GERAÇÃO BEAT? POR ZEUS, QUE LIRA IMPROVISADA É ESSA?

A Geração Beatnik foi um dos mais controversos movimentos que o século XX viu e ouviu, e veio ao mundo pelas mãos de seu principal avatar, o escritor norte-americano de origem franco-canadense, Jack Kerouac (1922 -1969). Mas é importante salientar que a prosa espontânea, elemento que funcionava como espinha dorsal para tal movimento, já gestava na felpuda barba branca do poeta também norte-americano Walt Whitman, considerado o primeiro dos beatniks.
Sua obra Folhas das Folhas da Relva (que passaria praticamente toda a sua vida escrevendo e reescrevendo) já remetia metaforicamente a condição subterrânea que esse tipo de literatura viria a desencadear e expor ao restante do cânone estabelecido e já consagrado por uma grande fatia do público e da crítica.
Folhas das Folhas da Relva nos dá uma visão de que existe uma outra linha coletiva abaixo das folhagens da relva, que já por si mesma, está muito mais próxima do chão, do solo empoeirado e pedregoso das artes, em especial, a linha nem sempre racional e metrificada da poesia que não obedecia às formas fixas.
Tomando essa linha de raciocínio, o movimento Beatnik ou Beat, espelhou-se não só nessa concepção de arte “maldita”, fadada a pequenos espaços escuros e enfumaçados por onde seus protagonistas e admiradores povoavam carregados de um individualismo radical que inconscientemente ir-se-ia tomando forma de coletividade, de bando, de horda, principalmente por minorias que não podiam desempenhar suas manifestações no âmbito artístico, intelectual, moral e sexual, pois não compartilhavam da mesma opinião com a sociedade vigente, mas também, por uma necessidade de incorporar uma filosofia de vida, que essa sociedade vigente e já citada, queria pisar com um coturno pesado, pronto a destinar ao limbo as pequenas “Dramatis Personae” (Bivar, 2004) que povoavam essa “grama” indesejada e amoral.
Podemos destacar outra obra que serviu de incentivo e semente para que essa trupe de novos poetas e escritores tomasse como modelo para a criação de suas respectivas obras. Memórias do Subsolo, de Fiódor Dostoéviski, era sempre citada por seus idealizadores como um marco da inconformidade individual diante de um mundo frio e racional. Segundo Soares (2008), a obra é dividida em duas partes distintas, e seu criador utiliza um personagem-narrador que narra suas desventuras na primeira pessoa do singular, através de suas reminiscências e auto-análise, além disso, há uma diferença de linguagem nessas duas partes distintas, mais explícita na segunda parte, com a utilização de elementos informais como: linguagem popular, informal falada, palavras depreciativas, diminutivos, aumentativos, frases feitas e marcadores discursivos conversacionais.
 Naquela época eu tinha apenas vinte e quatro anos. Já então minha vida era sombria e desordenada, eu era solitário como um bicho do mato. Não tinha amizades, até mesmo evitava falar com as pessoas, e cada vez me enfurnava mais no meu canto. Durante o trabalho na repartição, procurava inclusive não olhar para ninguém e percebia nitidamente que meus colegas não só me consideravam excêntrico como também - assim me parecia constantemente – olhavam-me com uma certa repulsa. (Dostoiévski, p.54)

Na obra de Jack Kerouac, esses elementos estarão mais presentes em On The Road, do que em sua primeira obra publicada, The Town And The City. Este romance, originalmente publicado em meados de março do ano de 1950, ainda tinha muitas “amarras” com o romance tradicional e sutilezas eufemismadas que, posteriormente, darão lugar ao som da urbe, ao palavreado dos guetos e variantes lingüísticas que nem sempre estarão de mãos entrelaçadas com a norma culta de sua língua original de criação.
Destacamos até aqui um dos nomes principais dessa geração de anjos caídos dos altos arranha-céus nova-iorquinos, juntamente com dois expoentes da literatura universal, que serviram de espelhamento para a futura produção desse grupo. Porém, a geração beat não ficará estancada apenas com o nome de Kerouac, antes mesmo de o autor utilizar a palavra beat em sua obra, um vagabundo viciado chamado Herbert Huncke que perambulava pela Times Square com uma pilha de livros debaixo da axila e em constante viagem de um entorpecente denominado benzedrina, vivia repetindo para si e para os transeuntes: “Man, I’m beat”.
 Este primeiro sentido etimológico da palavra “beat” dava uma significação de “derrubado” “abatido” “tombado”, mas depois houve outras significações para a palavra. Beat também é o radical da palavra beatitude, que dava um enfoque místico e santificado ao movimento. Algo como anjos “sujos” (sem pejorativos, claro), santos franciscanos que compartilhavam desde idéias e drogas, até pensamentos e desejos realizados ou não. Beat também tinha ligação com a batida do som Be-bop, estilo musical do final dos anos 40 que destacava dois nomes de peso como Charlie Parker e Dizzy Gillespie.
Há de se destacar que após o lançamento do satélite russo Sputnik ao espaço, em 1957, ano também da publicação de On The Road, houve a junção do radical “beat” com o sufixo “nik”, formando a palavra “beatnik”, fazendo alusão de que os componentes dessa geração eram indivíduos que viviam fora desse mundo. É claro que por parte de algumas instituições de ensino e professores dos Estados Unidos, que torciam o nariz para essa nova tendência, aproveitaram para depreciar tal junção para criarem outra de explícito tom depreciativo como “madniks”.
Segundo Bivar (2004), o movimento Beat teve seu marco inicial no apartamento da primeira mulher de Kerouac, Edith Parker. Foi nesse apartamento que os outros nomes significativos do movimento se encontraram pela primeira vez. Eram eles: Allen Gisnberg (1926 – 1998) autor do poema Uivo, publicado originalmente em 1956 e William S. Burroughs (1914 – 1998), autor de uma obra que até os dias hoje é de difícil compreensão semântica, intitulada Almoço Nu.
No quesito publicação, The Town And The City, mesmo sendo o primeiro livro de um componente da geração beat a ser publicado, não ficou com o mérito de ser a primeira obra desse movimento a vir à luz do mundo. De acordo com Brinkley (2006), essa láurea não-acadêmica foi ofertada para uma figura que ficaria, mais tarde, em segundo plano, e que no ano de 1952, em 16 de novembro, para ser mais exato, foi o autor de um famoso ensaio “Esta é a Geração Beat”, publicado originalmente na The New York Times Magazine e que se chamava John Clellon Holmes.
O artigo ainda não daria status a John como autor da primeira obra beat publicada nos Estados Unidos, mas faria com que o país, e mais tarde o planeta, soubesse da existência desse pequeno grupo que “pipocara” no mundo das artes e que parecia mais um convidado indesejado pelo resto do setor acadêmico e cultural da terra do tio Sam. Holmes, que não era exatamente um beat, mas sim um simpatizante que vivia entre os principais nomes dessa geração, receberia US$ 20 mil de uma editora para escrever um livro sobre a Geração Beat e que nasceria com o título de “Go”. Mas a obra, depois de publicada, segundo Bivar (2004) era mais o trabalho de um observador distante do que de um participante introduzido no coração do movimento.
Mas o que realmente importa é que, obra de observador ou de participante, a história deu a Jonh Clellon Holmes o legado de precursor da primeira publicação da Geração Beat. Ambos, livro e ensaio fizeram com que o movimento tivesse um boom e ganhasse uma atenção maior por parte de admiradores e oposicionistas.
Kerouac sentiu-se injustiçado, pois achava que On The Road era a obra que merecia tais confetes nesse novo carnaval do mundo literário, mas mal sabia ele, que os deuses guardavam para o futuro algo que não ficaria apenas no espaço apertado e triste do seu coração. Ele viria a ser o ícone de toda uma geração órfã e rejeitada por aqueles que não queriam ver o status quo maculado. Como um enorme risco de ponta a ponta na lataria de um Hudson cheirando a conservadorismo.


2. NA ESTRADA DE ON THE ROAD: SINOPSE SOBRE O ROMANCE E CONTEXTUALIZAÇÃO DAS PERSONAGENS DEAN MORIARTY E SAL PARADISE

O enredo do romance enfoca a história de um jovem escritor, o protagonista Sal Paradise, de vinte e cinco anos de idade, que mora com a tia num pequeno apartamento do outro lado da ponte da ilha de Manhatan. Paradise, que recentemente havia perdido a esposa, em conseqüência de uma súbita traição, começa a conhecer o estilo livre e espontâneo de escrita em algumas cartas de um jovem muito entusiasmado chamado Dean Moriarty, que mora na cidade de Denver, no Estado americano do Colorado, e que passara algum tempo num reformatório por ter roubado dezenas de carros por pura diversão. Roubava-os e os dirigia até que o tanque de combustível ficasse perto do final, para depois “devolvê-los” para seus respectivos donos, abandonando-os perto de onde ele já os havia pegado.
As cartas falavam a respeito de como ele estava entusiasmado com a leitura que vinha fazendo em relação ao escritos de Nietzsche. Paradise, junto com seus amigos Chad King e Carlo Marx, também entusiasmados com o estilo singular do jovem Dean Moriarty, ficam sabendo de que ele havia saído do reformatório e que viria para Nova Iorque encontrar-se com seus heróis, especialmente, Sal Paradise, que Dean acredita ser o novo amigo que o transformará em um escritor.

 (...) No bar eu disse: “Porra, cara, sei muito bem que você não me procurou só porque tá a fim de virar escritor e, afinal de contas, o que é que eu posso te dizer sobre isso a não ser que você tem que mergulhar nessa onda com a mesma energia com que um viciado se droga?” (p. 20).

A partir desse encontro, a vida de Paradise cai literalmente na estrada. Serão várias viagens cortando os Estados Unidos da costa leste a oeste, com e sem Dean, e fazendo várias paradas nessa cruzada pelo país, utilizando todas as formas de transporte possíveis: vagões de trem de carga, caminhões, ônibus, carros roubados e caronas em carros velhos e novos. Em algumas dessas paradas, a personagem se vê diante de profundas reflexões a partir de observações de momentos congelados que aos olhos comuns poderiam passar como banais.

Os pisos das estações rodoviárias são exatamente iguais pelo país inteiro, sempre recobertos de baganas e catarros, e eles provocam uma melancolia profunda que só mesmo as rodoviárias poderiam possuir. (p.54).


O romance aborda o senso de individualismo dessas personagens, mesclado a um pensamento de irmandade por afinidade ao estilo livre de vida, afinidade com o gosto musical, e a forte relação de ruptura com um modelo de vida tradicional que por parte dos Beats era enfadonha, desvinculada de reflexões que não fossem de apego ao material, que rejeitavam o afloramento subterrâneo de uma poesia “automatista” e verborrágica e que contribuía para a subsistência cotidiana que as pequenas personagens secundárias da vida interpretam todos os dias, em contraponto às pessoas que levam uma vida perigosamente autêntica num mundo cada vez mais competitivo e que doutrina o ser desde os primeiros contatos com a realidade que encaramos para podermos sobreviver todos os dias, todas as semanas, todos os meses e anos de uma existência pautada em um modelo fixo de crença, comportamento e opinião.
As personagens caminham numa estrada que tem uma placa de indicação que remete aos protagonistas encontrarem a essência da vida autêntica, formando o clã excluído que está se constituindo como uma sociedade alternativa no seio de uma sociedade tradicional e formal.

Mas nesta época eles dançavam pelas ruas como piões frenéticos e eu me arrastava na mesma direção como tenho feito toda a minha vida, sempre rastejando atrás de pessoas que me interessam, porque, para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo, aqueles que nunca bocejam e falam chavões, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício explodindo como constelações em cujo centro fervilhante pop pode-se ver um brilho azul e intenso até que todos caiam no “aaaaaaah!” (pág. 22).

O estilo e a velocidade na criação das obras por Kerouac, que por muitas vezes eram movidos à bebida, cigarros e drogas, e embalados pelo som fervilhante do Jazz e do Be-Bop, tinham uma ligação muito forte com a percepção auditiva dessas tendências musicais e do automatismo dos escritores e pintores surrealistas.
Kerouac mantinha-se como o saxofonista na sua base constante de improviso metafórico. Conforme salienta Bueno (1997), o mais irônico é que, na verdade, Kerouac desenvolveu esse estilo – o estilo beat por excelência: laudatório, verborrágico, impressionista, vertiginoso, incontido, “espontâneo”, repleto de sonoridade, de gíria, de coloquialismo e de aliterações – a partir das cartas que recebeu de Neal Cassady, em quem se espelhou para poder criar a personagem Dean Moriarty.

Os rapazes no Loop seguiam soprando, mas com um ar fatigado porque o bop estava em algum ponto entre o período ornitológico de Charlie Parker e a nova era que se iniciaria com Miles Davis. E enquanto eu sentava ali ouvindo aquele som noturno que o bop viera representar para todos nós, pensei nos meus amigos espalhados de um canto a outro da nação e em como todos eles viviam frenéticos e velozes dentro dos limites de um único e imenso quintal. (pág.29).

O enredo de On The Road baseia-se não só em aventuras pelos submundos da música, da prostituição, das drogas, do prazer efêmero e da inquietude que fazia com que os hormônios e neurônios dos jovens estivessem borbulhando como as febris notas do Be-bop enlouquecido numa atmosfera coberta de luz néon e anúncios luminosos de cerveja em noites regadas à conversas sobre filósofos e escritores que embasavam suas ações reais e criações ficcionais, mas também, sobre os elementos imagísticos e poéticos do interior dos pequenos centros fora das megalópoles como Nova Iorque e São Francisco.

Port Allen – onde o rio é uma chuva de rosas sob uma escuridão nebulosa e insignificante, onde entramos numa estrada sinuosa sob o fogo amarelado, onde, de repente, numa volta, vislumbramos o visco vulto volátil escoando suas águas sob a ponte e cruzamos mais uma vez a eternidade.  (pág. 29).



3. “DEANONISÍACO” HIBRIDISMO QUE REMETE A UM ENCONTRO DA TRADICÃO GRECO-ROMANA E A CONTRACULTURA BEATNIK DO SÉCULO XX

Jack Kerouac afirmou que a Geração Beat era um movimento Dionisíaco, a partir do momento em que teve consciência do sentido genealógico que essa afirmação criaria para os componentes do movimento.
 Quando se manifestou dessa maneira, o escritor plantou uma semente de inocência em seu coração, e o suco que escorria dessa videira entrelaçada em suas coronárias fez com que seus seguidores ficassem, como afirma Brandão(1997), num pé de parentesco com os Sátiros e as Ninfas, dançando vertiginosamente ao som dos címbalos, tendo ao invés de Dioniso no centro, Dean Moriarty, e no lugar dos instrumentos utilizados pelo cortejo de Dioniso, a Geração Beat utilizaria bateria, contrabaixo, saxofones, trompetes e pianos com teclados alucinantes e notas que seguiam dentro de um improviso de tom único na base, e polissêmico nas significações que irradiaria a partir desse núcleo sonoro que penetraria a mãe Terra, despertando os ouvidos dos habitantes do Hades.

O piano lançou um acorde. Sua boca estremeceu, ele nos encarou, Dean e a mim, com uma expressão que parecia querer dizer: Ei rapazes, o que estamos fazendo nesse mundo de merda? – e então chegou ao fim da canção, mas para isso teve que fazer umas preparações intrincadas, um final elaborado durante o qual poder-se-ia enviar todas as mensagens jamais sonhadas, para Garcia,  umas doze vezes em torno do mundo, mas que diferença isso fazia para todos os outros? Porque no fim das contas ali estávamos nós, transando com o inferno e com a amargura de nossa própria e exausta vida beat nessas horrorosas ruas do homem. (pág. 246).

Outra relação entre o deus grego e a personagem norte-americana Dean Moriarty permeiam o mito do surgimento de Dioniso. Conforme afirma Commelan, Dioniso era filho de Zeus e Sêmele, princesa tebana, filha do rei Cadmo. Como acontece com todas as amantes de Zeus, Hera enciumada se disfarça de sua ama, aconselhando Sêmele a pedir que Zeus aparecesse na sua forma divina.
A moça assim o faz e Zeus não pode negar esse pedido. Ao aparecer em sua forma divina, o deus emitiu raios e relâmpagos, incendiando o palácio e a pobre moça. Mesmo Sêmele estando em chamas, Zeus conseguiu retirar de seu ventre o bebê, acabando por gerá-lo em sua própria coxa. Ao longo de toda a juventude de Dioniso, teve que ser protegido da ira de Hera, ficando, também, afastado do Olimpo.
A personagem Dean Moriarty, segundo o narrador-protagonista Sal Paradise, também se vê órfão de mãe e a figura paterna é uma espécie de personificação dos bares de sinuca de Denver, que espera pelos trocados que o adolescente Moriarty arrecada com outros fregueses para que o velho Moriarty, o pai, possa beber a sua próxima garrafa de vinho. Além do fato de Dean não pertencer a qualquer árvore genealógica com algum direito a honrarias régias. Ambos, Dean e Paradise, são pessoas errantes em uma América que ainda não conhece num todo, seus próprios mitos e lendas. Dioniso, por influência da vingativa Hera, também é fadado a uma existência de “porto em porto”, quase que enlouquecido. Deus do vigor e da agricultura, do torpor do vinho e lascívia entre as mulheres. Erupção de um vulcão caucasiano, nada mais propondo, a não ser, liberar a alegria junto a seu cortejo e o prazer da música e da dança.
Assim também é Dean, não só para Kerouac, mas para todos os principais nomes da Geração Beat. Ícone longínquo. Preso a um plano de originalidade autoral. Peça apolítica como Dioniso. E defensor da política da libertação. Arte focada em si, que irradia alegria para seus convivas, como os primeiros raios de sol sobre a videira. 
Príapo da costa leste a costa oeste. Diferente apenas por não ser imortal. Sua imortalidade descende das linhas verborrágicas desse romance empoeirado, que cheira a pores de sol e poentes nos desertos da solidão humana condicionada a uma espécie de semidescendência da imortalidade cultuada por seus seguidores e admiradores. Ignorado por muitos. Lembrado por poucos que valem muito.

quarta-feira, dezembro 29

Jeca Tatu e a História dos debaixo

 [Mazzaropi]

O Jeca Tatu, entre outros, faz parte da galeria das personagens mais populares da cultura brasileira. Consagrado por Monteiro Lobato nas páginas de Velha Praga e Urupês, em 1914, o caipira de barba rala e calcanhares rachados do Vale do Paraíba e do Oeste Paulista caiu, tempos depois, no gosto do povo e hoje serve de referência para dizer das pessoas que denunciam apego pelas coisas da roça.
Muito se falou e ainda se fala do Jeca Tatu. Certamente muito ainda se falará dele. Por ora, falaremos apenas de um dos motivos que levou Monteiro Lobato a se entregar ao estudo do trabalhador rural paulista. A figura do Jeca Tatu em si fica para um próximo artigo.
Um desses motivos foi inclinação intelectual e artística de Lobato para o estudo naturalista dos temas populares em detrimento dos referentes elites. Pendor para o popular que era governado por uma concepção de história e de artista, grosso modo, do tipo “pé-no-chão” e subterrâneo.
É o tipo de imaginação histórica e artística que podemos depreender da fala do autor em vários momentos da sua vida. Observa ele, em 1911:
“A verdadeira vida dum artista deve ser esta que estou levando - vida de aprendizagem, como a teve o Wilhem Meister de Goethe. Viver todas as vidas - depois pintar a Vida. Uns tempos como pedreiro, outros como carapina, vivendo no meio deles, com o aroma das madeiras morando-nos no nariz, mais os cheiros das telhas e da cal e do reboco, com a unha do polegar da esquerda sempre negra das marteladas em falso. E depois, o mar, uns tempos de mar - e engajado em barco de vela, cantando e apanhando bofetadas tremendas do capitão - um capitão de suiças. E depois, cocheiro de cab em Londres, ou de fiacre em Paris, ou mesmo de tilburi em S. Paulo. Depois, criado, maquinista, guarda -freio da Central, motorneiro da Light, vendedor de frutas no carrinho, e de bilhetes de loteria, e caixeiro, e faroleiro, e camelot, e farol de roleta... Viver as vidas principais ‘vidas coloridas’ e realmente vivas - e só depois então casar. Só assim um homem tornar-se-ia honestamente casavel.” (LOBATO,1959:310-311).
Em carta de 1912, para o seu amigo Rangel, oporá uma história dos bastidores a uma história oficial, deixando clara a sua opção pela primeira:
“O que na Revolução Francesa me interessa é o que os estupidos historiadores á moda classica não contam. Eu quero fatias de vida da epoca, conservadas aqui e ali em memorias, em panfletos de despeitados. Interessa-me o bas-fond da revolução, o formigueiro dos interesses inconfessaveis, a trama secreta dos bastidores, os fios que movimentavam os polichinelos politicos - os subornos. A historia fala no patriotismo de Danton, na virtude de Robespierre, mas o que me interessa conhecer é o apetite de Danton, a ambição de Robespierre.Os grandes homens aparecem infinitamente mais interessantes, mais ‘homens’, quando despidos das falsas atitudes com que os veste a Historia - esse reposteiro...” (LOBATO,1959:314-315).
Mais do que uma história oficial e dos grandes acontecimentos, Lobato preconizará uma história da “gente miuda”, dos trabalhadores, só possível de ser rastreada através das memórias. Sobre isso, dirá a Rangel, em carta de abril de 1913:
“Parece que ando na idade de ler memorias. Só nelas temos o que é possível de historia verdadeira, com os bas-fond e as cozinhas e copas da humanidade. A historia dos historiadores coroados pelas academias mostra-nos só a sala de visitas dos povos. É um garni uniforme, incolor, tanto na França como na Turquia e Russia. Mas as memorias são a alcova, as anaguas, as chinelas, o pinico, o quarto dos criados, a sala de jantar, a privada, o quintal - a pele quente e nua, ora macia e lisa ora craquenta de lepra - da humanidade com h minusculo, esse oceano de machos e femeas que come, bebe e ama - e supõe que que faz mais alguma coisa além disso.” (LOBATO,1959:340-341).
Em geral, os protagonistas dessas narrativas históricas e ficcionais seriam, em vez de heróis de guerra, governadores e presidentes, os esquecidos sociais. Numa carta de 1911 a Rangel, enfatiza:
“O livro que v. planeja sobre bandidos do sertão, capangas, etc., tambem é dos necessarios. O assunto foi tocado pelo velho Bernardo Guimarães e outros - gente de pouco realismo, e de romantismo em dose maior que o quantum satis. O filão está virtualmente virgem.” (LOBATO,1959:316).
É ancorado nessa atitude e convicção de pensar, decididamente, o universo popular, com o intuito de delegar voz aos silenciados da História, que Lobato irá direcionar o seu olhar para o trabalhador rural do Vale do Paraíba. Estes silenciados cujas causas sociais e econômicas da sua dilaceração humana, o escritor conhecia muito bem, como mostra esse trecho do seu prefácio ao livro “Diretrizes para uma Política Rural e Econômica” , de Paulo Pinto de Carvalho:
“Quem do alto olha para o Brasil vê um complexo sistema de parasitismo em repouso sobre um larguissimo pedestal de escravos andrajoso e roidos de todas as doenças endemicas: o homem rural, o que chamamos o caboclo, o negro da roça, os milhões de seres sem voz que na terra mourejam numa agricultura ainda de indio - queimar e plantar, só, só, só. Sobre a miseria infinita desses desgraçados está acocorada a  nossa ‘civilização’, isto é, o sistema de parasitismo que come, veste-se, mora, e traz a cabeça sob a asa para evitar o conhecimento da realidade.” (LOBATO,1959:54-55).
JOSÉ APÓSTOLO NETTO
Professor universitário, historiador e jornalista
Bibliografia
CAVALHEIRO, Edgar. Monteiro Lobato. Vida e Obra. 2 ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1956, 2 vols.
LOBATO, Jose Bento Monteiro. A Barca de Gleyre. v. 1 e 2. São Paulo, Brasiliense, 1959.
______. Prefácios e entrevistas. São Paulo, Brasiliense, 1959

sexta-feira, dezembro 3

 A Palavra “Criatividade”- 
 Modos de Usar 

Gabriel PerisséProfessor da FASM
Doutor em Educação - FEUSP


A palavra “criatividade” é tão atraente quanto as palavras “amor”, “liberdade”, “auto-realização”. E igualmente indefesa (e potencialmente perigosa) quando empregada de modo abusivo, no sentido latino de abusus, em que o prefixo ab remete, não a uma idéia de ponto de partida (como é o caso da preposição ab), mas às noções de afastamento, ausência, privação.
Abusar de uma palavra, portanto, é não usá-la. É privar-nos de sua essência, de sua força e beleza originais, contrabandeando um pouco (ou muito) dessa força e dessa beleza para a satisfação de um objetivo que não é propriamente o de esclarecer as mentes. Abusar de uma palavra é manipulá-la, a fim de manipular pessoas, o que, por sua vez, supõe tratar (destratar!) as pessoas como não-pessoas, a violentá-las.
O abuso verbal é uma violência, e consiste em confundir o ouvinte ou o leitor. Há várias maneiras de realizar este abuso. Uma delas é afastar a palavra do seu contexto autêntico e inseri-la em outro, com o intuito de “convencer”. Eis aí uma forma de pôr em  prática o malicioso conselho de Harry Truman: “If you can't convince them, confuse them.”
Confundir, neste caso, é atrair sem enriquecer, sem ensinar, sem promover a nossa dignidade.
A beleza de um corpo feminino (para usarmos a eloqüência das imagens), associado às curvas de um novo carro, atrai o consumidor, instalado ingenuamente diante da televisão. Seu desejo de possuir a beleza confunde-se com o seu desejo de comprar um meio de transporte. O modelo do carro é cobiçado por causa da modelo no carro... E, semanas ou meses depois, o homem compra o carro, objeto erotizado, querendo também adquirir, como se fosse uma decorrência lógica da compra, a beleza de outros corpos femininos. Por força do status simbolizado nas linhas aerodinâmicas do automóvel, o motorista quer agora receber o olhar e o sorriso de uma bela mulher. O slogan (numa voz feminina suave e envolvente...) poderá dizer, por exemplo: “Nestas curvas, o caminho do sucesso.”
O empobrecimento e o insucesso se evidenciam mais tarde, numa espiral de decepção, tristeza e angústia, quando começamos a sentir os efeitos do vazio que nos restou, quando começamos a sofrer as conseqüências dessa confusão entre realidades que não deveriam surgir num mesmo nível de apresentação. O carro quebrou, logo, sou incapaz de amar e ser amado...
Este exemplo do carro erotizado, em que a mulher é reduzida a um brinde (ilusório, porque não virá no pacote...) e o homem, a mero cliente, refere-se à manipulação comercial cotidiana, em que somos seduzidos e arrastados a tomar decisões de compra.
Tal manipulação comercial, porém, é menos perigosa do que a manipulação das idéias e atitudes. A manipulação comercial também impõe, de modo subliminar, idéias e atitudes: a idéia da capacidade de consumo como índice de progresso pessoal, a atitude imediatista de querer a realização dos nossos desejos hoje, agora, já... mas o faz secundariamente. A manipulação ideológica objetiva questões fundamentais como a política, a ética, a religião, e é exercida por profissionais da comunicação com a maestria de quem sabe tocar nossos pontos fracos, “acionar” os “mecanismos” de nossas carências, produzindo fascinação e adesão irrefletida.
Somos carentes de criatividade e, por isso, sentimo-nos atraídos por visões de criatividade que, no entanto, nem sempre são das mais criativas...
A fim de analisarmos com mais concretude o uso e o abuso da palavra “criatividade”, pensei em utilizar como incentivo inicial à análise um livro de auto-ajuda chamado Divórcio criativo, de dois autores norte-americanos, Mel Krantzler e Pat Krantzler [1] .
A edição brasileira traz em sua capa duas fotos separadas. Numa, à direita, o rosto sorridente de um homem com seus 40 anos. Na outra, à esquerda, o rosto igualmente sorridente de uma mulher mais ou menos da mesma idade. O subtítulo — A separação sem traumas — indica que esses dois rostos separados, mas felizes (esfuziantes mesmo) são de pessoas que souberam divorciar-se com inteligência e maturidade. O release distribuído pela editora atua como uma “tradução” dessa suposta criatividade:
“Este é um livro corajoso, destinado a quem já se decidiu pelo divórcio, está em processo de separação ou já separado. Não trata da fase de repensar sobre esta decisão, mas ajuda as pessoas a olharem para a frente.”
O primeiro parágrafo inicia-se e termina com duas expressões significativas. O livro é corajoso e ajuda o leitor a olhar para a frente. A coragem e essa atitude de olhar para o futuro são sinais de criatividade. The courage to create, um livro de Rollo May, conceitua criatividade e coragem (coragem de crescer e superar-se) como duas realidades intrinsecamente unidas: “A coragem é necessária para que o homem possa ser e vir a ser. Para que o eu seja é preciso afirmá-lo e comprometer-se. Essa é a diferença entre os seres humanos e o resto da natureza. A bolota transforma-se em carvalho por crescimento automático; nenhum compromisso consciente é necessário. O filhote transforma-se em gato pelo instinto. Nessas criaturas, natureza e ser são idênticos. Mas um homem ou uma mulher tornam-se humanos por vontade própria e por seu compromisso com essa escolha.” [2]
Quem não apreciará um convite à coragem criativa?
O curioso, porém, voltando ao primeiro parágrafo do release, é que está descartada a “fase de repensar”, verbo decisivo numa vida humana criativa. Repensar é reler, é reconstruir o vivido, é voltar-se para o acontecido, não pelo mórbido apego ao passado, mas com o intuito de reavaliar, de acordo com as experiências adquiridas, o que se fez, as decisões que foram tomadas, os erros cometidos, os rumos escolhidos, com a finalidade ainda mais ambiciosa de aferir, conforme o conselho do poeta Píndaro, se de fato estamos nos tornando aquilo que somos após aquelas decisões, aqueles rumos escolhidos etc.
O livro sobre o divórcio criativo, portanto, não é um livro para repensar na atitude tomada. É preciso ir em frente... e o segundo parágrafo explica por quê: “Se hoje em dia, aproximadamente metade dos casamentos termina em divórcio, é necessário saber o que fazer para que ele não torne a vida de ambos mais dolorosa.”
O savoir-faire, no caso, consiste em evitar o agravamento da dor, uma vez que as estatísticas comprovam que (aproximadamente) metade dos casamentos termina em separação, um dado que seria necessário repensar. Repensar, contudo, é reabrir feridas, é aumentar a dor que o divórcio supõe. Vamos em frente, não repensemos, sejamos criativos... E, é bem verdade, num trecho adiante, lemos que “não se trata de um livro filosófico, mas muito concreto, sob um olhar da Psicologia para leigos, com uma linguagem bastante agradável”.
Do terceiro parágrafo do release destaquemos ainda um último trecho significativo: “Assim como em qualquer grande mudança de vida, o divórcio pode propiciar uma oportunidade de criar uma nova e positiva meta para o desenvolvimento pessoal.”
Novamente palavras belas e fortes: “propiciar”, “oportunidade”, “criar”, “nova”, “positiva”, “meta”, “desenvolvimento”... num contexto de fracasso, de desilusão, de decepção, palavras estas nada agradáveis, que refletem, no entanto, realisticamente, o estado de um casal que se divorcia.
A intenção dos autores do livro é motivar o(a) leitor(a) que se encontra acabrunhado pela dor da separação a, corajosamente, não qualificar o divórcio como um fracasso (fracasso não vende...), mas torná-lo uma “experiência criativa”, como expressam na página 25: “A palavra ‘criativa’ significa tornar alguma coisa nova a partir de uma situação. Isso significa responder ao divórcio como um desafio para viver uma vida melhor, no lugar de continuar a viver como se fosse uma vítima de um acidente de carro. Aprender com o passado, no lugar de ficar repetindo esse passado — eis a chave para um amanhã mais brilhante.”
Repensarmos o conceito de “criatividade” é perceber quando o seu uso caracteriza ou não um abuso. Terá sido um abuso empregar o adjetivo “criativo” ao lado do substantivo “divórcio”? Não estaremos confundindo dois níveis de realidade, em que a criatividade é retirada do seu contexto autêntico, produtivo, e associada a um outro contexto para que, neste outro, a força e a beleza de ser criativo compensem e, de certa forma, mascarem e justifiquem o naufrágio de um projeto de vida a dois? Não estaremos aqui, ainda que indiretamente, defendendo e legitimando o divórcio, já que podemos experimentar um “divórcio criativo”, capaz de, no final das contas, tornar-nos mais humanos e mais felizes?
A resposta, seja ela qual for, não deve ser precipitada. Os autores aqui citados diriam que não, que não se trata de um abuso. Pelo contrário, o divórcio precisa ser criativo, e, para prová-lo, escreveram o livro: “Nosso livro é uma tentativa de dividir com você os caminhos que você pode percorrer para fazer coisas positivas acontecerem, superando assim os acontecimentos traumáticos inerentes ao processo de divórcio.” [3]
Não se trata agora, neste artigo, de condenar em bloco a argumentação dos autores que, ao longo do livro, de certo modo, acabam ajudando o leitor a repensar muitas de suas atitudes perante o amor. E é verdade que, mesmo no caso extremo de um casamento falido, podemos, sim, fomentar a esperança de uma vida melhor. O importante é saber em que bases realmente criativas essa esperança e essa vida melhor estão sendo construídas.
Criatividade, recorrendo a um conceito artístico (e existiria outro modo de qualificar o conceito de criatividade?), é “poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse ‘novo’, de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar.” [4]
Estes quatro verbos são extremamente sugestivos: relacionar, ordenar, configurar e significar. Em todos eles nota-se a ausência de divórcios. O êxtase da criação consiste em criar relações, aprofundar relações, em ordenar (palavra que etimologicamente remete a urdir, sem confundir...) essas relações, configurando, estruturando uma realidade significativa e, por conseguinte, valiosa.
Um vida criativa é uma vida que promove relações, promove compreensão, promove encontro e promove união. O ser humano, ser relacional por definição, estabelece vínculos significativos entre realidades aparentemente distantes. Encontrando afinidades íntimas entre coisas e pessoas, recria a realidade. Recriar a realidade consiste em operar novos modos de unidade em diferentes planos da existência.
Para voltar ao tema do divórcio, quando usamos as palavras “divórcio”, “separação”, é porque, implicitamente, já concebemos o casamento como uma união. Não se separa aquilo que não se uniu. Mas há ainda outro aspecto a salientar. A separação conjugal, falando rigorosamente, não é separar dois objetos. Se eu separo dois objetos que estavam juntos dentro de uma gaveta, esta separação pode ser conveniente (ou não), num nível em que o “relacionamento” carece do mesmo sentido pessoal que ocorre no casamento. Ou, ainda em outros termos, a separação entre duas pessoas que criaram uma unidade conjugal é um ato necessariamente traumático que requer avaliação mais radical e mais... corajosa.
É preciso ter a coragem de qualificar o divórcio como um ato anti-criativo.
Tal afirmação, porém, só fará sentido se definirmos com mais precisão em que consiste a criatividade conjugal, a fidelidade criativa, o amor criativo.
Em primeiro lugar, porém, é preciso que nos livremos da armadilha dilemática que consiste em apresentar a questão nos termos casamento indissolúvel x casamento dissolúvel. Apresentado assim o problema, caímos uma vez mais no perigo de discutir infindavelmente num plano inadequado. A indissolubilidade do casamento não está no mesmo nível da defesa que se faz da sua indissolubilidade. Cabe-nos aprofundar um pouco mais na essência mesma do casamento criativo e não simplesmente opor argumentos a favor e contra.
O que é, afinal, o casamento criativo? Não estaríamos nós também abusando do adjetivo? O que há de especificamente criativo nesta expressão, e como depreender desta reflexão um conceito um pouco mais nítido de “criatividade”?
A caricatura do casamento nós a conhecemos, quando deparamos com experiências conjugais marcadas pelo medo, pelo egoísmo, pela falta de verdadeiro diálogo, pelo sadismo até.
Chico Buarque de Holanda o retrata brilhantemente no seu O casamento dos pequenos burgueses, da peça Ópera do malandro:

Ele faz o noivo corretoEla faz que quase desmaiaVão viver sob o mesmo tetoAté que a casa caia
Até que a casa caia
Ele é o empregado discretoEla engoma o seu colarinhoVão viver sob o mesmo tetoAté explodir o ninho
Até explodir o ninho
Ele faz o macho irrequietoEla faz crianças de monteVão viver sob o mesmo tetoAté secar a fonte
Até secar a fonte
Ele é o funcionário completoEla aprende a fazer suspirosVão viver sob o mesmo tetoAté trocarem tiros
Até trocarem tiros
Ele tem um caso secretoEla diz que não sai dos trilhosVão viver sob o mesmo tetoAté casarem os filhos
Até casarem os filhos
Ele fala de cianuretoEla sonha com formicidaVão viver sob o mesmo tetoAté que alguém decida
Até que alguém decida
Ele tem um velho projetoEla tem um monte de estriasVão viver sob o mesmo tetoAté o fim dos dias
Até o fim dos dias
Ele às vezes cede um afetoEla só se despe no escuroVão viver sob o mesmo tetoAté um breve futuro
Até um breve futuro
Ela esquenta a papa do netoEle quase que fez fortunaVão viver sob o mesmo tetoAté que a morte os una
Até que a morte os una

A “união” deste casal é puramente exterior, formal, periférica: vivem sob o mesmo teto, têm relações sexuais, mas não uniram as suas vidas numa só vida, não criaram um âmbito de encontro e de amor entre eles, não criaram uma unidade real. A ironia do “até que a morte os una”, fazendo pensar no “até que a morte os separe”, é uma declaração poética que nos faz ver a morte do amor e como o casal não tomou consciência e nada fez para evitar a vitória da dissolução, ainda que disfarçada pela “honra”, pela “fidelidade”.
Em termos artísticos, o casamento não foi, para este casal, uma obra de arte. Não houve criatividade e, como dizia Nietzsche, onde não há criatividade... cresce o deserto.
O contra-exemplo aponta para as condições de uma vida conjugal criativa em que o decisivo é o ponto de partida, o ideal que traçamos imaginariamente e que norteará, a seguir, um comportamento compatível com a dignidade das pessoas que se entregam no amor, ainda que precisem atravessar momentos de dificuldades. Dificuldades que lembram as que enfrentam todos os artistas durante o processo da criação de um poema, de um quadro, de uma escultura.
A noção de fidelidade criativa no casamento pode ajudar-nos a recuperar o conteúdo do conceito de “criatividade”, associado ao de “unidade”. Uma unidade que não vem “pronta”, e que é justamente a tarefa a que se propõem aqueles que se amam. Como tramar essa unidade?
Alfonso López Quintás oferece uma definição de unidade no contexto do encontro: “La relación de encuentro no es el resultado automático de la vecindad física entre dos o más seres. Es el fruto de una conquista, como todo acto creador, y exige determinadas condiciones en los seres que lo realizan [5] .
Que condições são estas? Uma, importantíssima, é a de não usar o outro, é a de cultivar uma serena aceitação do outro, aceitando-o como um dom, conhecendo-o, e suscitando um projeto comum de vida. Tal projeto realmente... projeta (e protege) aqueles que se encontram. Um pintor, por exemplo, que simplesmente usa o pincel e as cores para retratar o que quer... ainda não se entregou verdadeiramente ao ato criativo de pintar. Não entenderia, talvez, as palavras de uma jovem artista que vive um casamento intenso com a arte: “Quando pinto um quadro, preciso estar sintonizada com ele. O tema que surge geralmente está ligado a um momento ou fase da minha vida. Sonhos, metáforas, interpretações pessoais sobre um assunto. O pincel guia minha mão, que guia meus olhos, minha mente, minha imaginação, que por sua vez guia o pincel.” [6]
O artista comprometido com sua arte não pensa em divorciar-se dela, uma vez que sua arte é o ar que respira, é condição para que continue apaixonado pela vida. O artista defende a sua arte porque a sua arte o define, o ampara, o orienta, dá-lhe um sentido existencial. Há uma sintonia, uma ligação, e uma reversibilidade, no caso, entre quem pinta e o pincel.
O maior martírio para um artista criativo é ver-se privado da possibilidade de continuar criando. Esta separação é a sua morte.
Num casamento em que há unidade verdadeira, um e outro “se desenham”, “se esculpem”, interpretam diariamente uma peça teatral rica em improvisação, interpretam uma sinfonia rica em variações sobre o mesmo tema, surpreendem-se cotidianamente, como o poeta que todos os dias admira-se com as mesmas palavras, como o criador que não se cansa de saborear as possibilidades virtualmente infinitas da sua arte, e por isso desperta todas as manhãs com disposição renovada de criar.
A criatividade não é uma sucessão ininterrupta de sucessos. A dificuldade está presente, as limitações existem, os conflitos são uma realidade, há problemas, há períodos de incerteza, de infecundidade... tudo isso não assusta o ser criativo. O verdadeiro fracasso de um artista, de uma pessoa criativa, está no momento em que ela desiste, em que ela, tencionando a ortografia, dexiste... e, portanto, deixa de existir no nível de criatividade a que foi chamada.
Um casamento criativo não é um casamento em que as coisas se resolvem num passe de mágica (ou num passe da lógica da lei), como parecem resolver-se no divórcio. O divórcio é anti-criativo porque fecha a porta à tentativa de uma vida conjugal criativa.
Para mencionar um outro livro de auto-ajuda norte-americano, mas este voltado para o fortalecimento do casamento, é preciso ver, com realismo, que “a principal razão de fracasso de casamentos em proporções alarmantes é o fato de o conflito ser mal administrado” [7] . Ou, em outras palavras, todo o relacionamento experimenta atritos e conflitos, que devem ser encarados como oportunidades para uma luta corajosa em busca de novas coerências, da unidade, da felicidade, do crescimento pessoal [8] .
Dissociar a criatividade da luta é tirar da criatividade uma das suas mais belas características, iluminada por Carlos Drummond de modo dramático no poema O lutador, com os conhecidos versos: “Lutar com palavras / é a luta mais vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã.”
A luta é a arte da busca renovada. Como diz Adam Philips, num livro um tanto ou quanto cínico, “viver em casal é uma arte performática.” [9] . A luta do artista é a de recomeçar o jogo a toda hora, a de colocar-se ele mesmo em jogo mais uma vez, a de não regatear, a de não se poupar, a de sacrificar noites de sono, a de renunciar a momentos mais “divertidos”. E é com esse espírito lúdico-lutador que um casal cria um casamento criativo. Aproveitando os próprios tropeços para aperfeiçoar movimentos inesperados. Improvisando e aprendendo no ato do próprio improviso. Renunciando à auto-afirmação para afirmar o nós, como no inesquecível poema Casamento, de Adélia Prado:
            Há mulheres que dizem:            Meu marido, se quiser pescar, pesque,            mas que limpe os peixes.            Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,            ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.            É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,            de vez em quando os cotovelos se esbarram,            ele fala coisas como ``este foi difícil''            ``prateou no ar dando rabanadas''            e faz o gesto com a mão.            O silêncio de quando nos vimos a primeira vez            atravessa a cozinha como um rio profundo.            Por fim, os peixes na travessa,            vamos dormir.            Coisas prateadas espocam:
            somos noivo e noiva. [10]
O casamento como performance. A vida criativa como performance. A linguagem como performance.
A linguagem criativa cria unidade. As palavras de gratidão, por exemplo, são uma atitude produtora de realidades amáveis. A gratidão assegura um relacionamento, cria vínculos, incentiva uma visão generosa da realidade. Ob-ligatus, em latim, de onde provém o nosso “obrigado”, é exatamente isso: “estou ligado a você pelo favor que você me fez, pela alegria que você me deu, pela ajuda desinteressada que você me prestou, pelos momentos de prazer que compartilhamos, pelo seu gesto de carinho.”
A gratidão não é, a rigor, compulsória. Podemos ser beneficiados e não manifestar a gratidão. Talvez o outro não tenha feito mais do que a sua obrigação... O episódio evangélico em que Cristo, após curar dez leprosos, só recebe de um deles o ato da gratidão (cf. Lc 17, 11-18), demonstra, digamos assim, um “dado estatístico”: somente 10% das pessoas vive realmente a gratidão. Os outros nove leprosos ficaram curados e possivelmente pensaram que Deus cumpriu seu dever de Deus, sendo misericordioso com eles. Mas o que retornou para agradecer vinculou-se àquele que o curou, e, criando com ele unidade, criou harmonia, gerou alegria, descobriu fonte de novas “curas”.
A criatividade está marcada pela aventura. A atitude de “desistir do jogo”, ou da “luta”, nasce de um orgulhoso perfeccionismo que não condiz com atitudes criativas. O orgulho inibe a capacidade criativa, a capacidade de recriar caminhos: “Qualquer bom músico de jazz possui inúmeros truques de que pode se servir quando se vê num beco sem saída. Mas para improvisar você precisa abandonar esses truques, entrar no vazio e aceitar riscos, até mesmo o de dar com a cara no chão de vez em quando. Na verdade, o que o público mais adora é nos ver cair. Porque então pode ver como conseguimos nos levantar e ir em frente.” [11]
A aventura de encontrar saídas originais, para continuar tocando jazz.
A fidelidade criativa, no casamento, na amizade, na ação profissional, na vida, enfim, possui traços incompatíveis com o orgulho, a vingança, a mágoa, a indiferença ou mesmo o alívio. A criatividade, impregnada de humildade, a humildade saudável de quem se recusa a dominar, a manipular, não pode ser usada, e por isso nunca envelhece.
Recria-se.


[1] A edição brasileira é de 1999, pela Madras Editora (SP). Só nos EUA vendeu mais de 3 milhões de exemplares.
[2] A coragem de criar, 5a ed., Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1982, pág. 11.
[3] Pág. 193.
[4] Fayga Ostrower. Criatividade e processos de criação, 7a edição, Petrópolis, Edit.Vozes, 1987, pág. 9.
[5] Estética de la creatividad. Barcelona, PPU, 1987, pág. 195.
[7] Howard Markman, Scott Stanley e Susan L. Blumberg. Como fortalecer seu casamento. Rio de Janeiro, Campus, 1996, pág. 18.
[8] Na realidade, o livro, em inglês, intitula-se Fighting for your marriage.
[9] Monogamia. São Paulo, Cia. das Letras, 1996, pág. 5.
[10] Poesia reunida. 3a ed., São Paulo, Siciliano, 1991, pág. 252.
[11] Stephen Nachmanovitch. Ser criativo – o poder da improvisação na vida e na arte. São Paulo, Summus, 1993, pág. 31.