domingo, junho 27


A LEITURA E A CONSTRUÇÃO DO LEITOR EM POTENCIAL



"Ah, como é importante para a formação de qualquer criança ouvir
 muitas, muitas histórias... Escutá-las é o início da aprendizagem

 para ser um leitor, e ser leitor é ter um caminho absolutamente

 infinito de descoberta e de compreensão do mundo...

Fanny Abramovich"
Por Patrícia Ferreira Bianchini*
A leitura é um dos grandes, senão o maior, elemento da civilização. De acordo com Bakthin, o ato de ler é um processo abrangente e complexo de compreensão e intelecção do mundo que envolve uma característica essencial e singular ao homem: a sua capacidade simbólica de interagir com o outro pela manifestação da palavra. (BRANDÃO,1997).

Com base na concepção de Bakthin, pode-se afirmar que ler não é unicamente decodificar os símbolos gráficos, é também interpretar o mundo em que vivemos. É, ao mesmo tempo, uma atividade ampla e livre, embora não seja uma prática neutra, visto que no contato de um leitor com um texto estão envolvidas questões culturais, políticas, históricas e sociais, presentes nas várias formas de tradição. Deste modo, quando lemos, associamos as informações lidas à grande bagagem de conhecimentos armazenados em nosso cérebro e, naturalmente, somos capazes de interpretar, criar, imaginar e sonhar.

Para que isso aconteça, é necessário que haja maturidade para a compreensão do material lido, senão tudo cairá no esquecimento ou ficará em nossa memória sem uso, até que tenhamos condições cognitivas para utilizá-lo.

A leitura representa, para o leitor, a ponte entre o mundo lingüístico e o mundo real; e o convívio com a literatura permite ao homem desvelar novos propósitos de reflexão e uma apuração estética que aguça as preferências por determinadas opções de leitura.

Bom leitor, no entanto, é aquele que lê fazendo observações, analisando e aprofundando-se nas idéias apresentadas pelo autor do texto, compreendendo e construindo mentalmente sua síntese ou resumo e; que ao mesmo tempo, aperfeiçoa seus conhecimentos acerca do vocabulário, das variações semânticas das palavras, do sentido denotativo e conotativo das expressões de nossa língua empregando-os, posteriormente, na construção de um texto gramaticalmente correto.
Segundo Zilberman (1987) é a posse dos códigos de leitura que muda o status da criança e a integra num universo maior de signos, o que nem a simples audição ou o deciframento das imagens visuais permitem. Apesar dos obstáculos em torno da construção do leitor em potencial - tais como a falta de acesso a livros pelas camadas populares, ou mesmo a presença constante da televisão em nossas vidas (sem exigir quaisquer esforços do recebedor) - é imprescindível sua existência e poder para a formação da consciência crítica do indivíduo-leitor.

Por que criar o hábito de ler? Questiona-se, então. De acordo com a consultora Maria José Nóbrega, de São Paulo, além de ser uma forma de entretenimento e lazer, a leitura é também uma forma de adquirir conhecimentos em qualquer área: "Lendo também nos mantemos atualizados sobre assuntos do nosso bairro, da nossa cidade, do nosso país" afirma ela.

Corroborando, Cunha (1994) afirma que a leitura é uma forma altamente ativa de lazer. Em vez de propiciar, sobretudo, repouso e alienação, como ocorrem em formas passivas de lazer, a leitura exige não só um grau maior de consciência e atenção como também uma participação efetiva do recebedor-leitor.

Na atualidade, cabe principalmente à escola o papel de mostrar o valor da leitura e o deleite que um bom texto pode proporcionar. Entretanto, a família e a sociedade, na mesma proporção, devem assumir a tarefa de desenvolver nas crianças formas ativas de lazer – que as tornem indivíduos críticos e criativos tanto quanto conscientes e produtivos.

Partindo desses pressupostos, retoma-se o sujeito - o aluno-leitor em potencial - e o objeto de estudo - o livro - como desencadeadores do estímulo à leitura, através de uma íntima relação entre o indivíduo e sua língua materna. E instigar esse leitor em potencial é investir em sua habilidade de mergulhar e envolver-se na magia e sabedoria dos livros que alimentam e embelezam.

Ouvir e/ou ler histórias é adentrar em um mundo encantado, cheio ou não de mistérios e surpresas, mas sempre muito interessante, curioso, que diverte e ensina. Por meio dessa relação lúdica e prazerosa, da criança com a obra literária, temos uma das possibilidades de formar alunos-leitores. Além disso, a exploração da fantasia e da imaginação instiga a criatividade e fortalece a interação entre o texto e o leitor. A literatura infantil não deve, portanto, ser utilizada apenas como um "pretexto" para o ensino da leitura e para o incentivo à formação do hábito de ler. Se a obra literária estabelecer relações entre teoria e prática, tornar-se-á um objeto mediador de aquisição de aprendizagens.

Sabendo-se que a leitura é um dos mais importantes meios de se chegar ao conhecimento, torna-se necessário aprender a ler, com profundidade e não em quantidade, visto que ler é dar sentido às palavras.

Assim, saber ler é o ponto de partida para dominar toda a riqueza que um texto (literário ou não) pode transmitir, por conseguinte, bom leitor é aquele que faz uma análise do texto lido, aprofundando-se na compreensão dos detalhes e construindo seu próprio entendimento sobre o que leu.

Para Lajolo e Zilberman (1996, p.311) “ao espessamento das práticas de leitura, ainda que intermitente e cheio de recuos, corresponde um amadurecimento do leitor que, na inevitável interação com os múltiplos elementos de práticas mais complexas de leitura, rompe restrições, libera-se da tutela, enfim, alcança a emancipação possível”.

A suposição de que não se lê, porque não se conhecem os segredos maravilhosos do mundo da leitura, porque não se tem o estímulo apropriado ou não se tomou o gosto pela leitura, não resiste à análise isenta e sincera. O que parece necessário - mais do que campanhas promocionais de prática de leitura - é indagar, sem pré-juízos, quem, o quê, como, em que condições e por que razões ou não se lê isto ou aquilo. Em outras palavras, trata-se de verificar que fatores sociais, políticos, econômicos e culturais promovem ou desfavorecem esta ou aquela leitura. Trata-se de abandonar a postura magistral de quem sabe o que outro deve ser ou fazer e permitir que aflorem as contradições, os interesses, os valores que corroboram para as práticas leitoras na sociedade contemporânea. Trata-se, enfim, de pôr em questão tanto as leituras quanto os discursos sobre leitura, permitindo que se manifestem as práticas veladas, desautorizadas e desconsideradas.

Partindo da idéia de que o acesso democrático ao material escrito é condição básica para o incentivo à leitura, a biblioteca pública e/ou escolar apresenta-se como um espaço de sua realização e deve ser compreendida como um direito do cidadão.

Na década de 50, ao definir a criança como seu público-alvo, Monteiro Lobato já se antecipava ao que se tornou a tônica internacional da promoção da leitura: a base sólida para se formar um adulto-leitor se constrói desde a infância, através do contato com histórias contadas por adultos, do contato com livros, sem moralismos, com variedade e qualidade de temas e que expressem respeito à criança e à sua inteligência.

A sua preocupação em fazer com que o livro estivesse próximo aos seus leitores o colocou à frente de seu tempo. Do mesmo modo se antecipou, quando apresentou o livro como um produto a ser oferecido onde o potencial leitor estivesse, facilitando seu acesso. E o fez, tanto diretamente na escola, como no comércio em geral, independente das livrarias.

Embora, nos dias atuais, se tenha mais acesso à palavra escrita do que antes - seja através da escola, dos produtos de consumo ou dos meios de comunicação - a ausência desse material escrito, no dia-a-dia das pessoas, na verdade, é o empecilho mais concreto para a construção de uma sociedade leitora. Portanto, pode-se concluir que ser leitor não é uma questão de opção, mas de oportunidade.

Parafraseando o crítico, escritor e professor Alceu Amoroso Lima, é preciso que as crianças concebam a leitura como o mais movimentado, variado, engraçado e cativante dos mundos, e se entreguem ao encantamento proveniente da leitura de um livro e quiçá difundir-se-ão aos quatro ventos os admiráveis versos do grande poeta Castro Alves em “O livro e a América”:

“Por isso na impaciência
Desta sede de saber,
Como as aves do deserto –
As almas buscam beber...
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n’alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar.”


Referências:

ALVES, C. Espumas flutuantes. In: Poesias Completas. São Paulo: Ediouro, 1870.

BRANDÃO, H. e MICHELETTI, G. Teoria e prática da leitura. In: Chiappini, L. (coord. geral). Aprender e Ensinar com Textos Didáticos e Paradidáticos. São Paulo: Cortez, 1997, v.2.
CUNHA, M.A.A. Literatura Infantil: Teoria e Prática. São Paulo; Ática, 1994.
LAJOLO, M. & ZILBERMAN, R. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1996.
____________________________ A leitura rarefeita - livro e literatura no Brasil. São Paulo, Edit. Brasiliense, 1991.
ZILBERMAN, R. A Literatura Infantil na Escola. São Paulo: Global, 1987.


[* Patrícia Ferreira Bianchini Borges-Atualmente é Assistente de Alunos do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro – Campus Uberaba, graduada em Letras pela Universidade de Uberaba (UNIUBE) e especialista em Estudos Lingüísticos: Fundamentos para o Ensino e Pesquisa pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).]
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sábado, junho 26


A LEITURA E O ACESSO AOS LIVROS 

Tânia Alexandre Martinelli
A quantidade de pessoas alfabetizadas, a média dos anos de escolaridade e a cultura da população servem como parâmetro para verificar como anda o processo de desenvolvimento social de um país. Ninguém duvida de que os livros estão incluídos aí, já que são importantes para a formação intelectual e o enriquecimento cultural das pessoas.
Apesar disso, é comum escutarmos que no Brasil, país de tantos contrastes e deficiências, as pessoas leem pouco. Porém, as notícias a respeito das feiras de livros e festivais literários dão-nos impressão de que ocorre exatamente o contrário: uma grande quantidade de pessoas comparecem a esses eventos e adquirem livros. Muitas delas, inclusive, o fazem pela primeira vez, o que deixa o mercado editorial esperançoso de ter conquistado ainda mais leitores.
Outras pesquisas também indicam que os brasileiros não só leem, como também escrevem. Prova disso é o grande número de materiais enviados a concursos de literatura em todo o país.
Sendo assim, o que podemos pensar diante de tudo isso? Afinal, o brasileiro lê pouco ou não?
Essa discussão pode envolver diferentes aspectos. Um deles diz respeito ao tipo leitor que queremos analisar.
Muitas vezes, quando se fala em literatura, são considerados leitores, ou pelo menos os melhores leitores, aqueles que leem autores renomados, obras consagradas.
Mas nesse tipo de avaliação não se pode apenas englobar a leitura de determinados livros, encarados como modelos de leitura, e desconsiderar as outras literaturas. Há muitos livros que fogem desse modelo, como os de autoajuda, os esotéricos, de culinária, etc. O mercado editorial hoje é o mais variado possível. Não caberia aqui falar sobre, por exemplo, a qualidade, a opção de leitura de cada um, ou mesmo a aceitação ou não desses últimos livros citados por alguns profissionais da literatura considerada modelo de leitura. Aí já seria uma outra discussão.
Sem dúvida alguma, um dos grandes problemas a ser enfrentado hoje, quando o assunto é leitura, é o de que muitas pessoas ainda não têm acesso ao livro, mesmo existindo uma lei para assegurar ao cidadão o direito ao seu acesso e uso. Muitas escolas ainda não possuem bibliotecas e outras, quando possuem, são precárias.
A a Lei do Livro, assinada em 2003,  ressalta a importância do uso do livro como fator fundamental para o progresso econômico, político e social e a promoção da justa distribuição do saber e da renda.  
Na prática, o que acontece é que, para muitos, o livro é um bem muito caro, chegando mesmo a ser supérfluo. Em várias escolas as bibliotecas ainda precisam ser melhor abastecidas (vejamos agora como ficarão depois da lei de 25 de maio deste ano, que obriga todas as escolas públicas e particulares do país a instalarem bibliotecas nas suas dependências num prazo de 10 anos. Sabemos que só a lei não basta.). Ao dialogarmos sobre leitura, livros e cultura tudo isso precisa ser considerado.
Seduzir o leitor, falar que a leitura é uma viagem, é prazer, é conhecimento, é passaporte para um futuro melhor é importante, sim. Mas é importante também que tenhamos consciência de que várias questões precisam ser resolvidas. Promover a leitura, antes de tudo, é garantir os direitos dos brasileiros, é garantir o seu acesso aos livros. Quantos ainda não conseguiram ter acesso aos bens culturais?
A leitura se expandirá no país não só quando tivermos escolas e bibliotecas públicas de qualidade, mas também quando diminuirem as desigualdades sociais.
Aí, quem sabe, possamos dizer que os brasileiros leem muito, pois têm educação de qualidade, saúde e condições dignas de viver. E, claro, muitos livros ao seu alcance.


[*Tânia Alexandre Martinelli nasceu em Americana, São Paulo, em 19 de julho de 1964, local onde reside.
É formada em Letras – Português/Espanhol, pela PUCC e FAM, e durante 18 anos foi professora de Português.
Antes de começar a escrever para os públicos infantil e adolescente, produziu várias crônicas e poesias, algumas delas premiadas e publicadas em livros de coletânea.
Publicou seu primeiro livro em 1998 e nos últimos anos tem-se dedicado integralmente à Literatura infantojuvenil, escrevendo e ministrando palestras para alunos e professores.  ]

sexta-feira, junho 25


 A NARRATIVA DE FICÇÃO

Ricardo Sérgio de Menezes Nunes*
"A narrativa está presente em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há em parte alguma, povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas, e frequentemente estas narrativas são apreciadas em comum por homens de cultura diferente, e mesmo oposta:- a narrativa ridiculariza a boa e a má literatura: internacional, trans-histórica, transcultural, a narrativa está aí, como a vida." (Barthes, 1971, p. 19-20)
Narrar é expor, por meio da fala ou da escrita, um acontecimento ou uma sucessão de acontecimentos, mais ou menos encadeados, reais ou imaginários. Assim temos a narrativa poética, a narrativa objetiva (acontecimentos reais) e a narrativa de ficção (acontecimentos imaginários). No caso da narrativa de ficção, usamos o termo "narração", como designativo da prosa de ficção. Neste caso, a narração é uma invenção, uma criação humana e, como tal, exige arte, técnica, e imaginação. Enfim, a narração consiste no relato de acontecimentos ou fatos que envolvem: um narrador que a conte, personagens que vivenciem os fatos narrados, um espaço em que se ambiente a história, uma trama (conflitos), ação e o transcorrer do tempo em que a ação se desenvolve.
A Mentira Artística

O filho chega tarde a casa e o pai corre severo para ele:

— O que houve?

O filho expõe (narra) um conjunto de fatos, de acontecimentos que lhe servirão de desculpas. O objetivo dessa narrativa é o convencimento do pai. De modo que o filho procura os acontecimentos que motivaram o atraso (narrativa objetiva), ou os inventa (narrativa ficcional). Daí, não é sem razão dizer-se que: "o primeiro filho mentiroso descobriu a arte da narrativa", que agrada mais e convence mais porque vai além dos fatos, além da realidade. "A mentira artística chama-se ficção".

A Narrativa de Ficção ou Narração

A narrativa de ficção é construída, elaborada de modo a emocionar, impressionar as pessoas como se fossem reais. Quando você lê um romance, novela ou conto, por exemplo, sabe que aquela história foi inventada por alguém e está sendo vivida de mentira por personagens fictícios. No entanto, você chora ou ri, torce pelo herói, prende a respiração no momento de suspense, fica satisfeito quando tudo acaba bem. A história foi narrada de modo a ser vivida por você. Suas emoções não deixam de existir só porque aquilo é ficção, é invenção. No "mundo da ficção" a realidade interna é mais ampla que a realidade externa, concreta, que conhecemos. Através da ficção podemos, por exemplo, nos transportar para um mundo futuro, no qual certas situações que hoje podem nos parecer absurdas, são perfeitamente aceitas como verdadeiras.

Os contos de fadas, as fábulas, os desenhos animados, as narrativas fantásticas, em que tudo pode acontecer, também, nos remetem a outra realidade, bem mais ampla da que vivemos. Nestes casos, os textos narrativos, apresentam uma lógica interna que acabamos aceitando como verdade. É o que alguns teóricos chamam de “suspensão voluntária da descrença”, para exemplificar essa suspensão, cito dois exemplos:

Em a Metamorfose, o tcheco Franz Kafka inicia a narrativa com o personagem Gregor Samsa transformado em um inseto (metáfora da condição humana em um mundo adverso, desumano):

“Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa viu-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça, e ao erguer um pouco sua cabeça viu o seu ventre marrom, abaulado divididos em saliências arqueadas (...).”

Já Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, dá voz a um defunto que narra logo no primeiro capítulo o seu óbito:

"Algum tempo hesitei se deveria começar estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor [...]."

Para o leitor prosseguir na leitura dessas narrativas é necessário que ele suspenda temporária e voluntariamente a sua descrença e aceite, como um fato da realidade, uma personagem transformada em um inseto horroroso e um defunto que resolve contar suas memórias.

Toda narrativa de ficção transmite uma determinada visão da vida. É por essa razão que as narrativas de ficção ou a ficção nos tocam tão de perto.


 FICCIONISTA NÃO É O NARRADOR DA FICÇÃO

É comum, numa narrativa de ficção, o leitor confundir o ficcionista, autor da narrativa, com o narrador da história.

Autor e narrador são seres diferentes. O autor (contista, novelista, romancista) é  uma pessoa de carne e osso, que se utiliza de uma voz, ou seja, de uma personagem fictícia – o narrador - para nos contar aquilo que ele cria, imagina, inventa. Portanto, o narrador só existe no texto. O autor pode, então, ser entendido como a pessoa que se oculta atrás de uns narradores para relatar de uma determinada maneira, determinados fatos. Assim sendo, cada autor cria um narrador diferente para cada obra.

Essa diferença nem sempre é percebida porque, não raro, autores e narradores se utilizam das mesmas categorias pronominais, nas narrativas em primeira pessoa, para se identificarem: "Eu". Da mesma maneira que dizemos: Eu tinha 12 anos quando...

No entanto, mesmo quando uma história é narrada na primeira pessoa, não podemos dizer que é o autor que fala. Pois, no mais das vezes, o escritor pode criar narradores completamente avessos a sua maneira de ser e de pensar. Mais ainda, pode colocá-los em outro espaço e num outro tempo, em tudo diferente do seu tempo e espaço.

Tomemos como exemplo o personagem-narrador Brás Cubas (Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis) que, apesar de estar morto, narra suas memórias:

"Algum tempo hesitei se deveria começar estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor [...]."

Portanto, não há nenhuma relação entre Machado de Assis e Brás Cuba. Daí, podemos concluir claramente, que Brás Cubas (narrador) é pura obra de ficção. No romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, o narrador Honório "vê" o mundo à sua volta através dos valores de um capitalismo primitivo; ponto de vista totalmente contrário ao de Graciliano.


A VEROSSIMILHANÇA

"Vero" significa verdadeiro; "simil", semelhante; ou seja, o que é verossímil é semelhante ao que é verdadeiro. No caso da obra literária, verossimilhança quer dizer semelhante à vida, a realidade.
Verossimilhança é a impressão da verdade que a ficção consegue provocar no leitor, graças à lógica interna da história. A verossimilhança é, pois, a essência do texto de ficção.
Os acontecimentos de uma história não precisam ser verdadeiros, no sentido de corresponderem exatamente aos acontecimentos que se passam no universo exterior ao texto, mas devem ser verossímeis, semelhantes a eles.
A lógica interna da história ou coerência narrativa determina que os fatos da história devam suceder-se temporalmente, isto é, uma causa (fato), desencadeia uma conseqüência (novos fatos). Essa sucessão não pode estar em contradição, sob pena de tornar a narração inverossímil. Se uma determinada personagem é, no inicio da narrativa, caracterizada como uma pessoa que não suporta animais; não podemos dizer em seguida que ela criava em casa cachorros e passarinhos, sem apresentar uma justificativa convincente.
Levando em conta o que foi exposto, podemos dizer que a ficção cientifica e a narrativa fantástica é inverossímil, isto é, não é semelhante ao que é verdadeiro. Porém, ser inverossímil não as desqualifica do universo literário. Os acontecimentos da narrativa podem ser absurdos, ilógicos, sem contato com a realidade, mas se houver, no universo da história, uma coerência interna, um ambiente que justifique a ausência de lógica, a obra tem coerência interna, vai ser verossímil internamente. E é, por isso, que acabamos aceitando-a como verdadeira. Embora, seja inverossímil em confronto com a realidade.

A PERSONAGEM NA NARRATIVA


O termo personagem vem do Latim, persona(m), cujo significado é, máscara de ator de teatro. Em português, pode ser o personagem ou a personagem. Este último, talvez por causa da origem do termo em latim [persona]. No masculino, há quem diga ser devido à ausência de mulheres no teatro antigo; todos os personagens eram masculinos.
As personagens são arquitetadas pela fantasia do prosador e atuam no interior da narrativa literária; têm por função simular pessoas, comportamentos e sentimentos reais. Por isso, são construídas à imagem e semelhança dos seres humanos. Se bem construídas, nelas, teremos a impressão de pessoas vivendo situações e dilemas semelhantes aos nossos.
A personagem só existe na história se dela participa, ou seja, se age ou fala. Se uma determinada personagem é apenas mencionada na história por outras personagens, mas não participa direta ou indiretamente das ações, não será considerada uma personagem.
1. FUNÇÕES DAS PERSONAGENS
Quanto à função que desempenham na narrativa, as personagens podem ser:
a) Protagonista (do Grego, protagonistés) - É a personagem principal em torno do qual se constrói toda a trama. O protagonista pode ser caracterizado como herói ou anti-herói. Em nossa literatura é muito frequente o anti-herói como protagonista. Macunaíma é um exemplo do herói sem nenhum caráter, ou seja, o anti-herói.
b) Antagonista (do Grego, antagonistés) - é a personagem que cria o clima de tensão, opondo-se ao protagonista. Ao construir uma narrativa, nunca despreze o antagonista; o sucesso de uma narrativa está diretamente ligado à perfeita caracterização desse personagem. Que digam as novelas de televisão!
• Protagonista e antagonista são caracterizados, na linguagem popular como "mocinho e bandido". Em outros termos, herói e vilão.
c) Personagens Secundárias e Figurantes - personagens sem grande importância na narrativa. As secundárias participam na ação, no entanto, não desempenham papéis decisivos. Os figurantes não têm qualquer participação no desenrolar da ação, cabendo-lhe apenas ajudar a compor um ambiente ou espaço social.
2. CARACTERIZAÇÃO DAS PERSONAGENS
a) Indivíduos - são personagens que possuem características pessoais marcantes, que acentuam a sua individualidade. Em Dom Casmurro (Machado de Assis), Capitu é uma personagem indivíduo. Observe:
“Na verdade, Capitu ia crescendo às carreias, as formas arredondavam-se e avigoravam-se com grande intensidade; moralmente a mesma coisa. Era mulher por dentro e por fora, mulher à esquerda e à direita, mulher por todos os lados, e desde os pés a cabeça. (...); os olhos pareciam ter outra reflexão, e a boca outro império.”
b) Caricaturais - são personagens cujos traços de personalidade ou padrões de comportamento são propositalmente acentuados (às vezes beirando o ridículo) em função do cômico ou da sátira. São personagens muito comuns, principalmente, em novelas de televisão. Manuel Antônio de Almeida, em Memórias de um Sargento da Milícia, nos descreve uma personagem caricatural:
“Era a comadre uma mulher gorda, bonachona, ingênua ou tola até certo ponto, [...] todos a conheciam por muito beata e pela mais desabrida papa-missas da cidade. Era a folinha mais exata de todas as festas religiosas que aqui se faziam; sabia de cor os dias em que se dizia a missa em tal ou tal igreja, como a hora e até o nome do vigário; era pontual à ladainha, ao terço, à novena; não lhe escapava via-sacra, procissão, nem sermão."
c) Típica ou Tipos – são personagens identificados pela profissão, pelo comportamento, pela classe social, enfim, por um traço distintivo comum a todos os indivíduos duma categoria. Personagem Tipo seria o jornalista, o estudante, a dona-de-casa, a solteirona etc. É o caso, por exemplo, da maioria das personagens de Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, como o Barbeiro, a Parteira, o Major, os Ciganos, etc. O mesmo vale para a maioria dos personagens de Gil Vicente.
3. EVOLUÇÃO DAS PERSONAGENS
Quanto à evolução, dentro da narrativa, as personagens podem ser:
a) Planas ou Estacionárias – são personagens construídas em redor de uma única qualidade ou defeito. Por isso, não tem profundidade psicológica, e não alteram seu comportamento no decorrer da narrativa. São personagens estáticas, definidas em poucas palavras, por um traço, por um elemento característico básico, que as acompanha durante toda a história. É o irônico que está sempre fazendo ironias, o chato que só sabe ser chato, ou seja, são personagens que não apresentam contradições: são sempre boas ou más; corajosas ou mentirosas; malandras ou trabalhadoras. Como exemplo, podemos citar Iracema, do romance Iracema, de José de Alencar.
• As personagens planas, normalmente, são caracterizadas como tipo ou caricatural.
b) Redondas, Esféricas ou Evolutivas – são personagens complexas; definidas por vários traços diferentes, cheias de contradições; apresentam comportamentos imprevisíveis, enigmáticos, que vão sendo definidos no decorrer da narrativa, evoluindo e, muitas vezes, surpreendendo o leitor. Ora são covardes, ora corajosas; ora possuem virtudes, ora defeitos; enfim, expressam a verdadeira natureza humana. A personagem-protagonista de João do Santo Cristo do texto Faroeste Caboclo, é evolutiva, pois é uma mistura de santo e bandido.
[Ricardo Sérgio de Menezes Nunes, 62,Professor Aposentado-Campo Grande : MS : Brasil]
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quinta-feira, junho 24


Teorizando o concludo


Caio Rudá*

O concludo não é resultado de um esforço teórico para desenvolvê-lo. O empenho, no sentido de lapidá-lo, surgiu quando de uma sequência de poemas em que vi repetido um relativo padrão no número e arranjo de versos. Tal relativa despretensiosidade serviu para que somente após a organização desse artigo a nova forma poética ganhasse nome, antes existindo somente em sua funcionalidade.

Certamente, apenas reunir suas características enquanto poema num texto expositivo seria de um reducionismo completamente oposto à sua natureza poética. A origem do concludo está diluída em alguns poemas e compreende um modus operandi acidentalmente delineado. Assim, falar em gênese do concludo é também discutir a própria atividade artística.

Ironicamente, a casualidade em questão, fundamental ao amadurecimento da nova fórmula poética, parece em xeque quando se remonta ao primeiro poema escrito com o arranjo característico dos versos – um simples 6 – 3, isto é, uma primeira estrofe com seis versos e uma segunda com três – na medida em que o poema trata da questão do fazer poético:

poiesis


poesia é mais que rimar
meia-dúzia de vocábulos,
não é um mero brincar
com as palavras,
tampouco expressão
dos sentimentos.

poesia é quando você olha
para o papel e não consegue
deixá-lo em branco.


Escrever um concludo envolve, portanto, o desenvolver de uma idéia, reflexão, elucubração, dúvida, questionamento, posição ou asserção em uma estrofe e posterior e imediata conclusão na segunda. Esse valor semântico identificado em poiesis e em outros poemas abrangidos pela proposta, encontrou institivamente na fórmula 6 – 3 a construção ideal, justificada pela adequação rítmica da quebra de estrofe. A retomada na brevidade de três versos significa, além do eficaz efeito sonoro, uma adequada composição estética. Dessa forma, o rápido intervalo entre estrofes, o hiato essencial, é componente importante, que condiciona uma pausa com a qual o poeta trabalha na percepção do leitor e que antecede surpresa, decepção ou outro sentimento desejado pelo poeta.

O desfecho, em que o poeta realmente diz concludo¹, é pontual. A última estrofe não pode ser uma proposição, mas atestamento, uma conclusão encerrada no limite do poema. Ainda que, de maneira geral, restem incertezas acerca da matéria debatida, o poema precisa ser finalizado em seu último caractere.

Assim, após vários versos terminados, surgiu o primeiro concludo deliberadamente escrito como tal,

Insônia:


Um desassossego à noite me veio qual peça de arte.
Não me concentrava senão no balançar
da cortina ao vento, uma rubra pintura expressionista
em penumbra, cena fatídica de filme noir.
Desconfiei de contratempos em sol na bexiga,
minha mera gaita de foles desafinada.

Romance meu sem início nem fim,
somente acompanhado meio repentino,
a concepção sorrateira desse poema.


           Somente para finalizar, o concludo é um projeto poético que desperta a reflexão, não se preocupa com métrica e embora seja uma forma fixa, por dar ênfase à questão dos significados, acaba proporcionando ao poeta grande liberdade de abarcar o que quiser com o bônus de chegar a um objetivo no fim das contas.

Em última análise, o concludo é mais uma fórmula do que uma forma; suas características centrais são o apelo ao ato de reflexão no limite das 9 linhas. Nessa receita, mais importam os ingredientes do que a tigela.


¹ Concludo é a conjugação do verbo latino concludere (concluir) na 1ª pessoa do presente indicativo.


[CAIO RUDÁ é um jovem escritor que usa muito da intuição para compor sua poética e, apesar de não ser afeito às influências, as tem e as cita: Drummond e Leminski, o que não precisava fazer, pois saltam aos olhos. Caio Rudá de Oliveira nasceu em Riachão do Jacuípe, interior da Bahia, pouco depois de as águas de março fecharem o verão de 1989. Atualmente, cursa graduação em Psicologia, pela Universidade Federal da Bahia, mantém o blog Das Idéias de Caio Rudá (http://dasideiasdecaioruda.blogspot.com/) e escreve para a revista virtual de literatura Samizdat (http://www.revistasamizdat.com/). Sua vida é transitar entre o litoral e o sertão, assim como o faz também entre Arte e Ciência, na esperança de que um desses lhe explique o ser humano. Não é um entusiasta das explicações, mas esclarece que “não há o que pague um poema pronto”.]

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