sábado, julho 31


Novas perspectivas de leitura

                                                                                     Adelto Gonçalves (*)
                                               I
         Textos literários provocam reações diferentes em diferentes leitores e, por essa possibilidade de “diferença”, para a teoria da recepção, esses textos sempre são dinâmicos, gerando um movimento complexo que se desdobra no tempo. Essa frase de Pedro Lyra, retirada por Robson Coelho Tinoco de Literatura e Ideologia (Petrópolis, Vozes, 1995), explica bem não só o que é a chamada estética da recepção como define na medida certa aquilo que se pode chamar de mistério da linguagem, ou seja, a capacidade que têm certos textos de atravessar os anos e os séculos, sempre apreciados por gerações de leitores.
         Em 2006, quando este pesquisador foi convidado a escrever o prefácio para um livro de Contos, de Machado de Assis (1839-1908), que seria publicado em edição russo-portuguesa pela Universidade Estatal Pedagógica Hertzen, de São Petersburgo, com o apoio da Embaixada do Brasil em Moscou, o que lhe veio à mente foi que os brasileiros nunca deixaram de ler Dostoievski (1821-1881), muitas vezes, em traduções de segunda mão, do francês para o português.
         E mais importante: sempre o entenderam, pois imaginavam o que teria sido a São Petersburgo oitocentista e as personagens que nela se movimentavam. Sendo assim, não haveria por que temer a recepção de Machado de Assis na Rússia porque, afinal, o leitor russo, de alguma maneira, haveria de imaginar o que teria sido o Rio de Janeiro oitocentista e entender muito bem as personagens machadianas que nela se movimentaram.
         É que o romance como o conto sempre existe em três planos, como certa vez, num final de tarde de janeiro de 1990, no Café Samoa, em Barcelona, expôs a este pesquisador o escritor catalão Eduardo Mendoza: como o autor o imagina antes de escrevê-lo; depois, quando está escrito; e, por fim, quando o leitor abre o livro. Ao acabar de ler o romance (ou o conto), o leitor termina também de reescrevê-lo à sua maneira porque, afinal, imagina coisas que não conhece nem nunca poderá conhecê-las porque perdidas no tempo, tal como a São Petersburgo dostoievskiana ou o Rio de Janeiro machadiano.
         Esses episódios (re)imaginados, de acordo com a capacidade de cada leitor, que são o produto final do processo criativo iniciado pelo escritor, constituem o mistério da linguagem, um estranho fenômeno há muito estudado, mas nunca suficientemente desvendado, apesar de todo o esforço da chamada teoria da recepção ou “estética da recepção”, a mais jovem e mais importante manifestação da hermenêutica, oriunda da Alemanha.                                
                                               II
         A que vêm estas reflexões e lembranças? Vêm a propósito do livro Leitor real e teoria da recepção: travessias contemporâneas (Vinhedo-SP, Editora Horizonte, 2010), de Robson Coelho Tinoco, em que o autor, num primeiro momento, reúne estudiosos renomados na esfera da estética da recepção para, em seguida, apresentar análises críticas de obras de Machado de Assis, Aluísio Azevedo (1857-1913), Guimarães Rosa (1908-1967), Gustave Flaubert (1821-1880), Charles Baudelaire (1821-1867) e Murilo Mendes (1901-1975). E o faz com muito fôlego e criticidade ao analisar obras literárias cujos enredos nem sempre saltam facilmente aos olhos do leitor, como observa Ezequiel Theodoro da Silva na apresentação.
         Num dos ensaios da primeira parte do livro, “A semiologia da teoria da recepção no destino (atual) do texto moderno”, Tinoco observa que a leitura (de um texto jornalístico, de um romance, de um poema etc.), que não é uma atividade meramente cumulativa, não se dá por meio de movimento linear progressivo.
         “Lê-se simultaneamente imaginando e inferindo, recordando e prevendo, tentando, conscientemente ou não, apreender todos os níveis textuais de informação – poética, gramatical, lexical, semântica”, diz, lembrando que na análise de Wolfgang Iser, integrante da Escola de Constança e, ao lado de Hans Robert Jauss (1921-1997), o maior expoente da estética da recepção, lêem-se também as “estratégias textuais” a partir dos “repertórios” das experiências de vida e cultura de cada leitor. “Assim”, explica Tinoco, “é natural que nossas inferências iniciais, acerca do que vai sendo lido, gerem um conjunto de referências para a interpretação e compreensão do que vem a seguir, que bem pode demonstrar, como incorretos, as inferências e entendimentos originais”.
         Na conclusão desse ensaio, Tinoco vai mais além, ao observar que a teoria da recepção estabelece a troca (recepção) de informações (entre autor e leitor), “concluindo um sentido duplo de análise – o da obra manifestando ao mundo externo sua mensagem literária e o das experiências de mundo e vida, próprias de cada pessoa (leitor), compondo os grupos sociais de uma determinada sociedade”.
                                               III
 
          Especialista na obra de Murilo Mendes e autor de Murilo Mendes: poesia de liberdade em pânico (Brasília, Editora da Universidade de Brasília-UnB, 2007), Tinoco incluiu neste livro o ensaio “Murilo Mendes: a recepção aplicada a um estudo poético. A construção de uma poética inovadora”, que constitui um resumo crítico da análise desenvolvida em seu livro.
         Nesse ensaio, lembra que o modernismo romântico de Murilo Mendes libera uma carga efetiva de emoção-em-criação abrigada nesses dois polos em que a poesia se instala: escritor e leitor. “Nesse sentido, as emoções representadas por sua visão literária não são, em relação a esses dois pólos, iguais às experimentadas na vida cotidiana, marcada por necessidades imediatistas. São emoções diluídas em um tipo de tranqüila recordação que são liberadas pela leitura/recepção atenta em análises produtivas. Na verdade, são percepções sentimentais de emoções”, observa.
                                               IV
            À luz da estética da recepção, Tinoco faz ainda uma excepcional análise do conto “O Espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana”, de Machado de Assis, no ensaio “Leitura e recepção dos heterônimos (possíveis) em Machado de Assis: a modernidade nos personagens machadianos”, em que defende a idéia de que existem “muitos Machados”, mortos-vivos e eternos, assumindo sua forma e espaço nas ruas, nas alcovas, nas repartições, nos templos, nas festas, nos manicômios, como observou Luís Viana Filho em A vida de Machado de Assis (Porto, Lello & Irmão, 1984).
         Como se sabe, em “O Espelho”, encontramos uma síntese perfeita da visão de mundo machadiana, conto em que o alferes Jacobina expõe a um grupo de cavalheiros a sua concepção sobre a natureza da alma, defendendo que a alma interior seria formada por emoções e sentimentos mais íntimos que não ousamos dizer a ninguém, enquanto a alma exterior representaria o modo como interiorizamos a imagem que os outros fazem de nós.
            A partir daí, Tinoco analisa Machado de Assis em três de suas manifestações, ainda que haja outras que podem ser consideradas e redescobertas, como diz: o homem, o autor e o narrador.  Essas três manifestações, no entender do ensaísta, podem ser vistas também como “heterônimos” do senhor Joaquim Maria Machado de Assis, assim como Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos são de Fernando Pessoa (1888-1935). Mas, ao contrário de Pessoa, que conferiu local, data de nascimento e vida própria aos seus heterônimos, os de Machado de Assis “tiveram vida dependente um do ouro, com a particularidade de representar, cada um deles, um outro olhar para lugares diferentes de onde os outros olhavam”.
         Na verdade, Quincas Borba, Brás Cubas e dom Casmurro podem ser vistos mais como “semi-heterônimos”, assim como o Bernardo Soares, do Livro do Desassossego, é considerado um “semi-heterônimo” pessoano, tal como o definiu Jorge de Sena (1919-1978) em Fernando Pessoa & Cia.Heterónima: estudos coligidos 1940-1978 (Lisboa, Edições 70, 1984). Ou seja: um personagem que assume todas as características, principalmente a idiossincrasias, de seu criador.
         Seja como for, para concordar com as conclusões de Tinoco – ou abrir polêmica com elas –, o leitor-receptor terá de ler (e reler) este livro com atenção. Sairá dessa leitura – ou “travessia” – bem diferente, engrandecido e apto a entender como a estética da recepção pode oferecer visões interpretativas que abrem novas perspectivas de leitura. É essa a função de todo bom crítico. Como Tinoco mostra muito bem neste livro.
                                                           V
         Robson Coelho Tinoco, nascido em Guaratinguetá-SP, em 1960, é mestre em Língua Portuguesa (PUC-SP) e doutor em Literatura Brasileira pela UnB, onde é professor desde 1996 no Departamento de Teoria Literária. Em 2009, iniciou seu pós-doutoramento em Língua Portuguesa, pesquisando práticas e metodologias de leitura literária no ensino médio de São Paulo e do Distrito Federal.
LEITOR REAL E TEORIA DA RECEPÇÃO: TRAVESSIAS CONTEMPORÂNEAS, de Robson Coelho Tinoco. Vinhedo-SP: Editora Horizonte, 184 págs., 2010, R$ 34,00. E-mail: contato@editorahorizonte.com.br Site: www.editorahorizonte.com.br



[* Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br]

sexta-feira, julho 30


LEITURA: paralelos históricos e sociais definindo o seu lugar na linguagem

 RODRIGO AVELAR*

RESUMO

O estudo busca elucidar por meio dos acontecimentos sociais, elementos que tornem possível relacionar a leitura, a linguagem, o indivíduo e a sociedade. Para a construção dessas idéias, vários autores foram importantes, sendo alguns deles Martin Heidegger, Vygotsky, Mikhail Bakhtin, Roger Chartier entre outros. Objetiva analisar primeiramente, a leitura em seu desenvolvimento na história do homem, analisando relações entre individuo, linguagem, o ato de ler e a sociedade. Cria-se um paralelo entre esses elementos, tornando possível a sua analise com o olhar fenomenológico, onde cada elemento influi no avanço do outro, o que torna leitura e linguagem inseparáveis. Constata-se aqui que o que torna esses elementos da comunicação tão íntimos é a função socializadora da leitura, onde os seres humanos tornam possíveis através dela a troca de conhecimentos e o crescimento social e individual pela linguagem.

1 INTRODUÇÃO


O mundo atual nos traz uma grande gama de informações, tudo graças à sociedade globalizada, que diminui as distâncias, derruba fronteiras e aproxima os povos pela cultura “do mundo”. Cada vez mais nos deparamos com a necessidade de entender esses acontecimentos, ou de aprender a conviver com eles, em uma velocidade absurda.
Um dos maiores expoentes da globalização é o inglês. Dentro desse retrato social o domínio desse idioma se tona mais e mais importante, chegando a certos momentos a ser indispensável para a convivência diária com os indivíduos e com os acontecimentos. A língua inglesa ganha um status quase que comparável ao que se dá a uma pessoa que está sempre viajando, não tendo lugar certo para ficar, um cidadão do mundo, ou melhor, uma língua do mundo.
Pode-se notar que com a presença maior do inglês no dia-a-dia, muitos conceitos culturais foram transportados para vários cantos do globo. As palavras do idioma são incorporadas aos vocabulários de outras línguas com naturalidade, mesmo que uma palavra específica já exista para exprimir o significado que o indivíduo quer passar. Com certeza essa é a parte menor do bolo, pois a cultura incutida na língua também é repartida com os outros povos, mudando tradições, incorporando novas tendências, unificando cada vez mais o mundo sob a bandeira da globalização.
Por conta dessa pequena reflexão, tendo em vista tudo que a linguagem representa para o homem, surge a ânsia em buscar explicações para o que vem acontecendo no mundo: uma invasão da inconsciência em nome da globalização. Sendo a língua inglesa uma disciplina lecionada no Brasil em caráter obrigatório, surge a necessidade de definir como está e o que vem acarretando ao individuo o ensino da mesma nas escolas brasileiras.
Para que esse trabalho seja desenvolvido, primeiramente busca-se encontrar ligações entre o indivíduo, a linguagem, o ato de ler e a sociedade. Para tal, inicia-se uma análise histórica enfocando o desenvolvimento da leitura dentro da história da humanidade, tendo como objetivo o esclarecimento de relações que levem a união entre esses elementos. 


2 LEITURA: PARALELOS HISTÓRICOS E SOCIAIS DEFININDO SEU LUGAR NA LINGUAGEM
 
 Ao pensar no mundo como ele se apresenta hoje, pode-se ver que cada vez mais existe uma maior cobrança sobre os indivíduos que dele fazem parte. Cada profissão, antiga ou criada recentemente aumentou seu patamar de exigência, por conta do nível de desenvolvimento da sociedade.
Quando se coloca a leitura no centro dessa discussão, sofrendo as pressões sociais, constata-se que essa habilidade não foi trabalhada de forma eficaz, fato muito expressivo aqui no Brasil, aonde chegando ao mercado de trabalho, são poucos os profissionais que detém essa habilidade, que no dia-a-dia é assaz necessária para a resolução de problemas e escolhas de caminhos em suas respectivas áreas.
A partir daqui, pode-se traçar um paralelo sobre a importância da leitura dentro da linguagem, não só como um ramo profissional, mas também voltada para o indivíduo em sua vida.
A motivação para a busca de explicitação desse ponto de vista vem da idéia de construção pessoal. A capacidade de leitura já nasce com o ser humano, mas através dos anos, e principalmente na escola, é trabalhada em comunhão com o desenvolvimento lingüístico. O que vale ressaltar aqui é a ordem, muitas vezes invertida, do surgimento da leitura e da língua. Mesmo com a necessária integração entre os dois, a leitura aparece primeiro na história de um indivíduo, pois este já nasce com essa habilidade, sendo um fator para a aquisição da língua.
Por isso, torna-se importante desenvolver os paralelos entre fatos históricos e de ideologia social que se relacionaram durante os séculos da história humana que possam definir o papel da leitura dentro da linguagem.
Para iniciar essa linha de pensamento, busca-se aqui o que vem a ser leitura na sua significação. Ferreira (1975) e Houaiss (2001) gozam da mesma definição para o ato de ler. Primeiramente é definido como ato de decifrar signos gráficos que traduzem a linguagem oral, o que mostra a relação íntima com a língua.
Mesmo com a ligação elucidada fortemente, o que mais chama atenção são as definições subseqüentes, que de certa forma ilustram visões de leitura que a sociedade moldou durante os anos, ou séculos, fato esse que transforma essa ação em um ponto de partida para desenvolver o pensamento sobre o ato de ler, o indivíduo e a língua em geral.
A definição “arte de ler” (HOUAISS, 2001, p. 1739) nos remete a antiguidade, mais precisamente na Grécia, onde a história entre leitura e escrita começa a ser traçada. De acordo com Cavallo e Chartier (1998), estes veículos de comunicação estavam presentes na estrutura funcional da democracia ateniense, sendo produzidos textos voltados para a leitura pública, ou seja, pela oratória.
A palavra arte dá o significado da leitura oral na época, que era tratada como tal. Isso acontece porque através desse ato que se concretizava a função principal do livro e do ato de ler na época, que era a conservação do texto, podendo fixá-lo e trazê-los novamente à memória de seus leitores.
 

[...] As ilustrações áticas em vasos dessa época documentam a transição de cenas que mostram livros sendo utilizados como textos escolares, portanto, textos com finalidades educativas de um certo grau, ou ainda cenas de leitura propriamente dita, em que os leitores são inicialmente figuras masculinas, mas em breve também seguidas por figuras de mulheres-leitores. Esses leitores não são solitários, em geral, aparecem em contextos representativos de entretenimento e de conversação, sinal de que a leitura era vista sobretudo como prática de vida em sociedade (ou no interior de uma associação). Embora conhecida, a leitura solitária era rara, pelo menos a julgar pelos poucos – aliás, muito poucos – testemunhos iconográficos ou literários que sobreviveram (CAVALLO; CHARTIER, 1998, p. 11).


Sabe-se que vários autores desenvolvem a visão de construção da língua no seio das relações entre os indivíduos, ou seja, em sociedade (BAKHTIN, 1998; GADAMER, 2007; AVELAR, 2008, VYGOTSKY, 2001), o que leva ao pensamento de que a formação social grega e seu olhar para a leitura propiciaram um grande desenvolvimento da língua, já que muitas pessoas puderam se apoderar dela, ou melhor, dominá-la.
Mesmo com o domínio da leitura oral existem registros de que a Grécia experimentou vários tipos de leitura, que se distinguiam conforme a função que aos textos fora atribuída. O que elucida melhor isso são as palavras de Cavallo e Chartier (1998) que descrevem a aparição de novos modelos de textos, como o manual de caráter técnico, textos de critica filológicas e literárias e textos estratificados, voltados para profissionais de determinadas áreas.
Começam a surgir os primeiros traços da leitura como a conhecemos hoje, um ato íntimo e silencioso, mostrando a mudança de pensamento da sociedade, que nesse momento estava no período helenístico, representando a transformação do olhar sobre o ato de ler para um “dobrar-se sobre si mesmo” (CAVALLO; CHARTIER, 1998, p. 15).
Nesse momento, a sociedade sofre mudanças profundas em sua estrutura, pois o ponto de poder muda para Roma, onde os patrícios dominavam as fontes de conhecimento para que pudessem se sustentar no topo da pirâmide social (BRAICK; MOTA, 2002). São notadas maiores dificuldades para o acesso ao saber, sendo que essas informações só circulavam entre os nobres.
As mudanças sociais nesse período também afetaram a leitura e o modo como ela era entendida. O império romano herdou não só a estrutura física dos livros gregos, que chegaram como despojos de guerra, mas também as práticas de leitura da sociedade grega.
 

Nesse cenário em que muitas pessoas sabem ler e no qual circulam numerosos produtos escritos, manifesta-se uma crescente demanda de livros que encontra uma resposta em três planos: na criação de bibliotecas públicas e incremento das particulares, complementadas pelo florescimento de tratados que visam guiar o leitor na escolha e na aquisição de livros; na oferta de textos novos (ou refeitos) destinados a novas faixas de leitores; na produção e distribuição de um tipo diferente de livro, o “codex”, mais adequado às necessidades desses novos leitores e das diferentes práticas de leitura (CAVALLO; CHARTIER, 1998, p. 17, grifo do autor).


As primeiras diferenças perceptíveis são nos livros, pois estes têm sua estrutura modificada. Surge o codex, que é mais próximo do formato de livro que temos hoje em dia. É importante lembrar que o tipo oriundo da Grécia era o volumen, os tradicionais papiros, que, como já dito anteriormente servia ao modelo de leitura oral, pública, típico da sociedade grega.
A crescente necessidade de proporcionar leitura s dá pelo fato do progresso da alfabetização, que influi em maior número de pessoas com acesso a linguagem escrita. Cavallo e Chartier (1998) colocam esse acontecimento como o principal fator para a transformação do mundo Greco-romano em um ambiente com vasta circulação de cultura escrita.
Apesar disso, vale lembrar que os textos eram direcionados, ou seja, a circulação livre se dava com textos voltados para tipos específicos de leitores que estavam na parcela dominada. Os escritos considerados ricos não saiam do alcance dos nobres.
A de se pontuar aqui que neste período, através do contato social dos indivíduos, sendo que este tem em seu interior a leitura, a língua foi se transformando e se moldando, mostrando grande participação do ato de ler, pois é através dele que os indivíduos retêm as informações e podem passá-las para os outros impregnada da idéia do emissor sobre o assunto. Esse processo se repete dentro da língua, onde suas nuances e características vão se moldando segundo a identidade da comunidade.
Esse pensamento fica elucidado nas palavras de Ribeiro (2003):

O contexto cultural constitui um fundamento básico para a compreensão do texto. Cada indivíduo pertence a um grupo social e os contextos social e cultural encontram-se intimamente correlacionados. As inferências geradas dependem, portanto, do conhecimento de mundo prévio do leitor. Dessa forma, ao se ler o implícito no texto, integram-se os dados à própria experiência do mundo de acordo com a cultura em que está enraizado [...] (p. 114).


O termo “contexto cultural” influenciando o modo de ler ganha mais força na entrada da Idade Média, onde o desenvolvimento dos hábitos de leitura continuou. De acordo com Cavallo e Chartier (1998), o mediador entre o modelo da Antiguidade e o da Idade Média foi o “codex*”, mas mesmo com essa semelhança houve uma ruptura entre as “velhas” e as “novas” maneiras de ler.
Contudo, existiram diferenças nessa separação. No mundo bizantino, conhecido como Oriente Grego, permaneceu o ensino publico e privado elementar e superior. A alfabetização continuou a se desenvolver e as práticas como os círculos de leitura e bibliotecas particulares continuaram. O “volumen**” era utilizado para fins litúrgicos, sendo praticada a leitura em voz alta.
Já no Oriente Latino foram detectadas várias mudanças nas práticas de leitura.


* Palavra oriunda do latim que significa “livro” ou “bloco de madeira”.
**  Palavra oriunda do latim que significa “rolo” ou “livro em rolo”, conhecido também como papiros.

Do final do século XI até o século XIV, tem-se uma nova era da história da leitura. Renascem as cidades e com as cidades as escolas que são os lugares do livro. A alfabetização se desenvolve, a escrita progride em todos os níveis, os usos do livro se diversificam. Práticas de escrita e práticas de leitura, de algum modo separadas na Alta Idade Média, aproximam-se, tornando-se função uma da outra, formando um nexo orgânico e inseparável. Lê-se para escrever, para o “compilatio”, que é o método peculiar da composição das obras da escolástica. E escreve-se para leitores (CAVALLO; CHARTIER, 1998, p. 22, grifo do autor).



 Como fica exposto acima, na Alta Idade Média o Oriente Latino adotou várias mudanças que representaram uma ruptura mais forte com a antiguidade. O hábito de leitura silenciosa se intensificou e foi limitada às Sagradas Escrituras e a textos de edificação espiritual. A leitura em voz alta existia. No entanto isso só acontecia na Igreja, com textos litúrgicos e de edificação.
Na Baixa Idade Média fica explicito que as idéias do Mundo Bizantino e do Oriente Latino se aproximaram, podendo de certa forma servir de apoio ou complemento uma para a outra. Surge um novo conceito sobre a escrita, que de certa forma remonta a idéia de leitura antecedendo a escrita: os textos são escritos pensando nos leitores.
A sociedade influenciou a leitura e a língua fortemente nessa época, pois com os implementos de vários modelos de leitura de textos e maneiras de organizá-los, a linguagem passa a se desenvolver com mais velocidade.
Cavallo e Chartier (1998) colocam como aspectos principais do novo modelo de leitura a presença de maior objetividade ao explorar textos e livros, visando mais compreensão, elucidando de melhor o significado e a sentença. A facilitação da localização dos textos através de sua apresentação e a escrita em língua vulgar.
Isso propiciou um grande desenvolvimento da língua através da troca social da leitura, pois a escrita se desenvolveu com o surgimento da pontuação, fato esse que aproximava ainda mais os textos escritos da oralidade. Cada vez mais, a escrita, e, por conseguinte, os livros ganham um aspecto de diálogo, de conversa entre o escritor e o leitor.


Talvez a principal contribuição da tecnologia à delimitação e disseminação da leitura tenha sido a invenção da imprensa mecânica, no século XV. Essa conferiu ao livro outra configuração material, de que adveio sua maior maleabilidade e acessibilidade. Ele deixou de ser um objeto raro e de difícil utilização, para, aos poucos, pôr-se ao alcance de um maior número de pessoas, pelo menos das que sabiam ler e se dedicavam aos estudos. Determinou também uma mudança fundamental no uso da língua literária, pois incentivou a expansão do vernáculo na literatura. E provocou novas formas de percepção, pois a circulação da linguagem passou a ser mediada cada vez mais pela intervenção da escrita (ZILBERMAN, 2008, p. 14).


A Idade Moderna, que compreende o período do século XVI até o século XIX, foi o momento histórico responsável pelas maiores mudanças na estrutura social. Vale ressaltar que essas transformações em sua maioria são responsáveis pela formação social contemporânea.
Nesse período histórico estão localizados dois grandes acontecimentos: a Revolução Industrial e o surgimento da Burguesia e do Capitalismo. Fica claro aqui que a mudança de pensamento traz avanços em vários aspectos, e entre eles a leitura. Segundo Cavallo e Chartier (1998), o principal invento tecnológico foi a invenção da imprensa mecânica, que propiciou primeiramente a produção em larga escala de livros, podendo alcançar ao mesmo tempo um público maior.
Com isso, acontece a “ascensão” da leitura silenciosa, pois um maior número de livros tira a necessidade de leituras públicas, e a internalização do ato de ler, tornando-o individual, naturalmente toma o seu lugar nos processos de leitura.

Entre os séculos XVI e XIX, a geografia das práticas de leitura no mundo ocidental está ligada, em primeiro lugar, às evoluções históricas que inscrevem as relações com a cultura escrita em conjunturas de alfabetização, em escolhas religiosas, em ritmos da industrialização extremamente diferentes. Essas diferenças traçam fronteiras fortes e duráveis: entre uma Europa alfabetizada cedo e uma Europa que o é mais tardiamente, entre os países que permaneceram católicos e os que foram alcançados pela Reforma, entre as áreas marcadas por um desenvolvimento precoce e as que permaneceram por muito tempo dominadas por uma economia tradicional [...] (CAVALLO; CHARTIER, 1998, p. 24).


Por conta dessas nuances históricas expostas acima acontece a revolução da leitura, da qual faz parte a ascensão da leitura silenciosa. Mas esse modo de ler traz uma ideologia maior em seu significado, que é a mudança da concepção do ato de ler, que passa de um olhar de conservação e memorização para um a visão de livro como instrumento do trabalho intelectual.
Claro que existiam restrições impostas pelo próprio sistema social. Vale lembrar que o Capitalismo burguês é baseado no capital, ou melhor, no dinheiro, e isso controlava o acesso aos livros. Os textos mais valiosos não chegavam a todos, mas sim a minoria dominante, servindo como forma de manutenção do poder.
A leitura continua a desenvolver seu papel na influência sobre a língua, e vice-versa. Através do ato de ler se estabelecia uma nova separação entre os dominantes e os dominados. Enquanto os indivíduos com maior poder aquisitivo desfrutam de textos ricos, considerados de linguagem culta, as produções voltadas para os menos favorecidos “facilitavam” seu acesso ao conhecimento pela língua vulgar, o que também permite uma manutenção intelectual do poder, pois o que a minoria dominante produzia era considerado uma obra superior.
De acordo com Cavallo e Chartier (1998), no século XIX surge um novo grupo de leitores, que compreende mulheres, crianças e operários, completando assim a expansão da produção escrita. Nesse momento, todos os indivíduos da sociedade tinham a oportunidade de acesso a livros pensados para cada tipo de leitor, e também disseminando uma linguagem carregada de um pensamento do papel de cada um na sociedade.
A partir daqui, vem a Idade Contemporânea, onde foi dada continuidade as transformações iniciadas anteriormente. Fica clara a influência que leitura, linguagem e sociedade geram uma sobre a outra, e também a ligação intima entre o ato de ler e a língua, que se desenvolveram juntos para chegar ao patamar em que estão hoje.

O discurso são as combinações de elementos lingüísticos (frases ou conjuntos construídos de muitas frases), usadas pelos falantes com o propósito de exprimir seus pensamentos, de falar do mundo exterior ou de seu mundo interior, de agir sobre o mundo. A fala é a exteriorização psicofísico-fisiológica do discurso. Ela é rigorosamente individual, pois é sempre um eu quem toma a palavra e realiza o ato de exteriorizar o discurso (FIORIN, 2006, p. 11).

Ao analisar esse pensamento pode-se ter uma noção do que é a linguagem e qual é o lugar da leitura dentro de sua estrutura. Através do seu desenvolvimento na história, o ato de ler foi o responsável por disseminar a língua para todos os indivíduos da sociedade. Claro que aqui a referência maior é feita em relação ao livro, mas pensando no discurso, é possível ver que os textos são discursos, ou seja, falas de um indivíduo que chegam a várias pessoas, que se tornam objetos de interpretação de cada leitor alcançado, não só as idéias contidas nele, mas também a língua utilizada, sendo repassadas e transformadas.
Sendo a leitura uma habilidade socializadora, que é efetuada não só por intermédio de textos escritos, mas também através da oralidade, do contato do eu com o outro eu, fica claro que seria impossível o desenvolvimento da língua e até sua aprendizagem fora do ato de ler. É por meio dessa ação que ocorre a aprendizagem da linguagem e o avanço estrutural da mesma, fazendo com que se torne marca da sociedade a qual pertence, mostrando a realidade daquela comunidade.


3 CONSIDERAÇÕES FINAIS


Após o desenvolvimento desse pequeno estudo fica claro o que já fora explicitado algumas vezes em outras pesquisas sobre a leitura e a sociedade. Primeiramente fica aqui a idéia de unidade, mas não como se conhece, isto é, sendo as duas uma só. Na realidade são dois elementos diferentes que trabalham dentro da estrutura em prol de uma mesma coisa, que é a linguagem.
Por conta disso, a leitura, a linguagem e a sociedade têm aqui comprovadas as suas ligações dentro do desenvolvimento da história humana. Talvez ao olhar de outros seja uma formação simples, ou melhor, óbvia, mas ao desvelá-la ela se torna complexa, especialmente por um dos elementos que permeia a construção de todos os outros elementos que constituem a estrutura social da linguagem: o homem.
Tudo está envolvido com o indivíduo, seja a formação social, que são vários seres humanos, seja linguagem, que é a forma que o homem utiliza para se comunicar com outrem e expressar suas idéias, experiências e concepções de vida, seja pela leitura, canal pelo qual o eu toma para si as construções intelectuais do outro eu através da reflexão, podendo assim ampliar seus conhecimentos sobre a vida, sobre a própria sociedade e sobre ele mesmo, isto é, o homem.
Tendo essas informações em mãos, é possível preencher o objetivo principal desse trabalho, que é o de descobrir as relações que existem entre o indivíduo, o ato de ler, a linguagem e a sociedade. Fora explicitado acima que a estrutura da linguagem gira em torno do homem e que o mesmo permeia todas as formações elementares da estrutura, ou seja, sem o ser humano, ou melhor, sem o eu que manifesta a ação não há língua, e, por conseguinte, não há comunicação.
Aqui fica explicita a relação maior que coloca a leitura como combustível dessa engrenagem, que é a função socializadora da mesma, possibilitando a comunicação. Havendo o ato de comunicar existe a possibilidade de aprendizagem da linguagem, pois isso faz parte da estrutura comunicacional, que compreende o eu se projetando para outro eu, colocando seus pensamentos para o outro pensá-los e tomar posse deles.
Ao cumprir a meta desse trabalho constata-se que não é possível ocorrer a aprendizagem da linguagem fora da leitura, pois esse ato possibilita a comunicação da língua e a sua transformação estrutural, que ocorre para que ela melhor se coloque no tempo em que está sendo usada na sociedade a qual pertence.

[*Educador na modalidade de educação infantil, especialista em Língua Inglesa pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá, graduado em pedagogia pela Universidade Cândido Mendes.]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AVELAR, R. Leitura e Autonomia na vida dos educadores e educandos. Revista Enfoque. Nova Friburgo: v. 2, n. 2, p. 46-50, jan. / jul. 2008.
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria dos romances. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini, et all. São Paulo: UNESP, 1998.
BRAICK, P. R.; MOTA, M. B. História: das cavernas ao terceiro milênio. 2 ed. São Paulo: Moderna, 2002.

CAVALLO, G.; CHARTIER, R. Introdução. In: CAVALLO, G.; CHARTIER, R. (orgs.) História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998, v.1, p. 5-40.
FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.

FIORIN, J. L. Linguagem e ideologia. 8 ed. São Paulo: Ática, 2006.

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