sábado, outubro 2

“Que é Educação?”









Chanceler  *Prof. Dr. Nelson Mello e Souza
Membro da Academia Brasileira de Filosofia - ABL



 Colocada como está, em forma simples, direta, a questão não parece fazer qualquer sentido. A resposta se impõe a si mesma como óbvia: educação é o processo conduzido por instituições especializadas formais com o objetivo de preparar as novas gerações tanto para o desempenho adequado dos papéis sociais legitimados quanto para atender às exigências do mercado de trabalho, para isto transmitindo, de modo sistemático, o conhecimento historicamente acumulado.
 Se há divergências, elas giram em torno dos melhores métodos e processos para o logro dos fins sintetizados acima. Estes fins não são questionados.   Os debates que se travam sobre a educação referem-se ao maior ou menor alcance democrático do sistema adotado, às formas de melhorar o preparo dos professores, selecionando-se os métodos pedagógicos considerados mais adequados, além da melhoria dos currículos, do uso de técnicas mais modernas, essencialmente de caráter áudio-visual, para a transmissão dos conhecimentos.
O consenso reflete uma posição ante a vida ajustada ao mundo moderno. Como este mundo apresenta um lado material em avanço constante, pouco importa que o faça em meio a desequilíbrios psicológicos e ecológicos. A expansão do egoísmo é o seu centro dinâmico. Afinal trata-se de uma sociedade de mercado. O que o sistema educativo tem de fazer é preparar o individuo para funcionar adequadamente dentro dele. Tanto em [i]seus valores quanto em sua competência técnica. Nada mais.
Não obstante esta obviedade, o homem com suas ânsias, dilemas e sentimentos, não parece esgotar-se na lógica de uma sociedade de mercado. Continua havendo uma realidade espiritual que a filosofia, a arte e as religiões vêm tentando equacionar desde há muitos milênios.  A sociedade atual em sua forma e em sua dinâmica competitiva, acaba negligenciando este aspecto. Com esta negligência monta um painel de incompreensões que faz do homem moderno um peregrino à espera de Godot, como define Samuel Beckett. Sua busca de compreensão, solidariedade, união e afeto, é danificada pelo choque de interesses criando um problema crítico para os que refletem sobre o sentido da educação. Aprisionada pela lógica do sistema cuja base é a especialização progressiva, a educação corre o risco de perder sua bússola orientadora deixando o homem em pura desordem interior a tentar terapias de apoio e promover o sucesso da literatura de auto ajuda.  O que vemos é um espetáculo de insegurança apoiado em alicerce frágil incapaz de prover algum sentido para nossa vida espiritual.  Os valores em pedaços estimulam a reflexão pragmática que trata a educação como um problema de meios mais eficientes e não de fins mais condizentes.
A sociedade dividida por especializações é submetida à influência condicionadora da “técnica” sempre em mutação. Repele como inadequado qualquer sistema educacional que se mostre impreciso quanto à formação para o mercado de trabalho.
A sedução da técnica tem várias implicações. Muitos, entre eles Anísio Teixeira, jamais deixaram de sublinhá-las. Em seu artigo sobre “Ciência e Humanismo” observa que a convivência entre a amplidão polimorfa do humano e as exigências especializadas da técnica dividem o Ser. Nestas condições o homem progride materialmente e se deteriora espiritualmente.
Suas considerações abrem espaço para enfrentarmos o questionamento proposto acima de modo não convergente com o consenso.
A palavra grega “techné”, origem semântica do substantivo “técnica”, significa “fazer de maneira apropriada com vista a um determinado objetivo. “ Na Grécia clássica como em todas as grandes culturas do passado, o trabalho continha muito de “arte” levando a marca pessoal do responsável, de sua guilda, de seu atelier ou oficina.  Foi até revestido de caráter sagrado e o preparo dos profissionais constituía-se em processos sigilosos, os chamados “mistérios”. Tudo vinha penetrado por um sentido. O homem completava-se em seu trabalho, realizava-se nele, mas a educação diferia do treinamento necessário. Seu objetivo era preparar o individuo para a vida social não para o trabalho individual.  
O mundo moderno rompeu com tudo isto unindo educação às exigências do trabalho.  Com os avanços da produção industrial no Ocidente a especialização impõe a orientação formativa segmentada, para viabilizar o comando operacional do cada vez mais complexo mecanismo produtivo. O trabalho perde seu sentido arcaico, separando o trabalhador do produto final de seu esforço.
Modernamente o fenômeno, já perfeitamente visível desde as observações de Adam Smith sobre a produção de alfinetes, em fins do século XVIII, veio ganhando densidade impressionante. Em todos os níveis, não apenas no trabalho fabril. A literatura moderna nos dá exemplos das distorções a que se sujeita até mesmo o trabalho intelectual.
A especialização fraciona o homem. Herbert Marcuse, nos anos 60 do século passado, em sua critica aos valores da cultura material que surgia no horizonte produtivo como um gigante de Goya, designou a resultante deste processo educativo como formador do “homem unidimensional”. Parece-me mais que isto. Não se trata de estimular uma única dimensão. Trata-se de baralhar todas elas num conjunto gelatinoso que destrói a coerência do Ser com importância decisiva na configuração anímica, humanística e psicológica dos indivíduos.
O entendimento do que é “educação” e como se define o seu processo, portanto, necessita ser repensado. Pouco eficiente para isto é perder a visão de síntese capaz de captar o sentido dos tempos que vivemos.
Sabemos como é difícil enfrentar a força de uma realidade que se impõe como verdade. Ela se legitima a partir de um valor de base – obediência ao mercado – tornando-se padrão de coerência na condução dos sistemas educativos. Torna-se irredutível a qualquer linha alternativa, a não ser a aberta por ele mesmo, fazendo com que se defina “educação” do modo sugerido mais acima, com evidente ausência de preocupação com os objetivos e os fins humanos de todo o processo.  Torna-se até perigoso pensar ou agir de outra forma. O castigo é sermos marginalizados na luta da vida, tratados como abstratos, vagos, românticos sem remédio, desorientados sem remissão, destinados ao ócio sem dignidade dos que vivem no jogo do parasitismo social.
Em nosso mundo competitivo a multiplicidade bem definida de instâncias concretas emerge como dimensões do conhecimento especializado. São óbvias e impositivas para orientar nossos modelos educativos.  Os críticos da modernidade podem rejeitá-la como danosa ao ser humano. Não são ouvidos. Suas vozes se perdem na indiferença da vida, no torvelinho agitado dos múltiplos atores e nas imposições da bolsa dos valores. Teimosas, logram ficar entre nós, apenas como ecos de um mundo que se foi para sempre.  A relação do individuo com a vida vem sendo firmada pela dinâmica social da “Técnica”.
Sob o ponto de vista educativo o fenômeno exige uma espécie de “quid pro quo”, ou “um pelo outro”.  O individuo moderno se doa à sociedade como um ser que se “coisifica” para cumprir o papel esperado no mecanismo produtivo. Deixa de ser individuo para ser “coisa”, número, ficha, registro sem face, cliente, fornecedor ou vendedor, sombra que se agita no anonimato das grandes instituições públicas ou privadas.  Nesta linha a sociedade o recompensa. Abre seus espaços sócio financeiros para retribuí-lo com status e renda compatível. Ele se entrega à dinâmica da economia de mercado como o Fausto de Goethe entregou-se à idéia da recuperação da juventude: inteira e completamente, de corpo, alma. É sua verdade obsessiva.   
Dentro destas circunstâncias, que são as nossas, como diria Ortega, somos formados por um sistema de educação que flexiona seus músculos institucionais num sentido único. O de ajustar-se ao rigor metodológico exigido para favorecer o cumprimento das imposições dos tempos. A sensatez aconselha o ajuste a este mundo. Não o seu enfrentamento. Muito menos o esforço crítico de pensá-lo.  Constrói-se um imaginário aprisionado ao tipo de vida que nos compete viver. Para todos os que sonham melhor abandonar-se neles por não haver alternativa a ser sonhada.    
Desta forma, a tarefa de definir “educação” torna-se dispensável. Todos a entendem como algo evidente por si mesmo. Não se exige nada mais que refinar o existente para viabilizar a dinâmica do presente. O real é o racional, como nos indica Hegel e seu objetivo é preparar o homem produtivo moderno, o “homo econômicas” que vai compor os quadros de nossa humanidade possível.  

Justamente devido à crise atual, que se materializa na dramática desorganização da economia, o oposto deveria ser prioridade. Repensar nosso sistema de valores e principalmente como ele se incorpora no processo educativo. Afinal a crise foi precipitada por executivos formados pelo processo educativo que se define como a base do sistema. Tudo indica a necessidade de uma reflexão mais cuidadosa, o que faz o mérito de um seminário como este.
Repensar o problema da educação, contornando a armadilha do óbvio, vai nos mostrar o muito que já existe acumulado em termos de reflexão sobre o problema educacional e seu significado. Aceitar como verdade irretocável o padrão de exigências da sociedade de mercado pode nos meter num labirinto sem saída visível.  
O conceito de “educar” parece carente de melhores reflexões de apoio. Importante destacar a influência de interesses bem objetivos que exige esclarecimentos. Abrindo este caminho já não seria tão simples nem tão axiomático responder a nossa questão inicial.   
Definir educação sempre foi centro de antigas controvérsias, preferências culturais e de época, diversidade de objetivos, variação de classe e de meios.  A complexidade do problema não justifica a relativa passividade filosófica dos educadores atuais diante do tema.
Não é necessário ser exaustivo e ir, como pretendeu Anísio Teixeira, às origens do pensamento filosófico para destacar a importância da educação. Anísio formou entre os lideres da modernização educativa do Brasil nos anos 30, 40. Fez parte do Gabinete de Gustavo Capanema com Abgard Renault, Drumond de Andrade e outros intelectuais interessados no ajustamento do Brasil aos novos tempos. A despeito de pragmaticamente orientado não quis abandonar a perspectiva filosófica e humanista. Por isto, num esforço interpretativo, entendeu estar a origem da filosofia ligada ao problema da educação.
Não importa descer a este nível de análise. Nem propor que a filosofia na verdade não deveu sua origem à meditação sobre dilemas educativos. Seu impulso motivador foi, acima de tudo, a inquietação humana sobre a origem do mundo e do Ser. Para nosso propósito, no entanto, parece adequado concordar com Anísio ao mostrar que a educação não pode ser bem compreendida fora do envoltório filosófico. Assim o foi pelos primeiros pensadores sistemáticos, desde os sofistas, que jamais entenderam a educação como atividade dedicada ao “know how”, mera escrava do tecnicismo galopante.  Desde então, passando pelas primeiras universidades medievais, a educação era o processo de transmissão do conhecimento que envolvia a técnica, certamente, mas acima de tudo tinha por objetivo a formação do Ser.  Nunca se definiu a educação como atividade estratégica para se ajustar o homem às demandas da produção de bens para o consumo.      
Para nosso tema é suficiente apresentar uma síntese das duas grandes vertentes do pensamento historicamente consolidado para revelar ambivalências, divergências e antagonismos que impedem qualquer consenso automático e fácil sobre suas funções e objetivos sociais.
Não iremos à Grécia clássica, nem a Roma antiga menos ainda às culturas orientais. Fiquemos entre nós, no Ocidente. Iremos ver duas propostas teóricas conhecidas, notando como ambas se afastam da definição concebida pela lógica da economia de mercado.   
 Devido ao avanço das ciências sociais em nossa cultura, ciências que, de modo irônico, Florestan Fernandes, denominou de “desprezadas” devido à sua inutilidade prática na dinâmica industrial, duas correntes parecem definitivamente firmadas: a ético filosófica e a sociológica.
A primeira vertente deriva do conceito latino do “eduscere”, origem do verbo “educar”. Tendo perfil definido pela preferência idealista ganha conotação firme no pensamento de Rousseau e na filosofia de Kant sendo aceita por muitos, entre eles, John Stuart Mill.  
Neste caso, como se definiria educação ?
“Educação” seria o processo de formação do Ser que possibilita ao individuo o desenvolvimento pleno de sua potencialidade.  Notemos que não se fala sobre adaptação ao mercado e sim em desenvolver espiritual e culturalmente o individuo.
 “Eduscere” tem sua origem semântica construída para indicar o processo que torna objetivo o teor de humanidade contido dentro de cada um de nós em termos de talento, arte, inteligência e capacidade própria de ação e reação.  A tarefa da verdadeira “educação”, do “eduscere”, seria propiciar condições para sua plena realização.
Esta base filosófica tem forte conteúdo humanista e idealista. O pensar, a condição de “ris cogita ns”, como Descarte já havia antecipado, supõe um sujeito pensante. Kant jamais discordou desta observação lógica e auto- evidente. Mas agregou algo decisivo. O sujeito pensante, para ser “pensante” supõe ter consigo uma qualidade transcendental, a possibilidade de “pensar”.  Posição que desde o idealismo grego vinha marcando a diferença entre “razão” e “natureza”, sendo a “razão”, o “ser racional”, a qualidade exclusiva do homem. Ela é “transcendental”, na linguagem de Kant, no sentido de estar “além” da experiência, ser prévia a ela, superando-a em sua realização concreta.  Condição que não parece ser compartida pelo homem com nenhum outro animal, todos presos à sua matriz instintiva.  
Variando de pessoa para pessoa, de talento para talento, de vocação para vocação, “eduscere”, para ser eficaz, dependeria da possibilidade aberta pelos sistemas educativos. Por isto Rousseau não via de modo favorável as imposições e interditos sociais constantes do processo normal de educação, preferindo o contato direto com a realidade, o experimento prático, a liberdade de estimular a mente para agir de acordo com a natureza. A resultante seria a autonomia do pensar e do agir por si mesmo. Para ele nesta formula de liberdade dirigida e confiança induzida estaria a chave para que o individuo pudesse encontrar-se com seu próprio Ser.
Esta posição é bem visível em todo projeto educativo cuja proposta básica é o auto aperfeiçoamento. Foi o grande objetivo contido na expressão pedagógica da professora italiana Maria Montessori. Como é igualmente visível em seu antecessor, o suíço Pestalozzi. Este pioneiro, seguindo a linha deRousseau, já propunha métodos capazes de favorecer o auto desenvolvimento.
De acordo a esta vertente, a resposta a nossa questão original seria mais ou menos a seguinte: educação é o processo social que permite ao individuo realizar em vida seu potencial humano. Como processo seria melhor ou pior, eticamente falando, na medida em que atinge de modo mais completo todos os membros da sociedade.           
Vejamos, no entanto o outro ângulo da questão. Ele nos explica porque o conceito de “eduscere” tem limitações. Dificilmente pode ser aceito como guia teórico para dar uma resposta convincente ao problema proposto.
A vertente sociológica atende à convocação do debate para completar e corrigir o posicionamento descrito acima.
O “realizar-se plenamente” não poderia ser a razão do processo educativo, por ser uma posição teórica que parte de um dado absoluto num mundo real onde, dentro de cada cultura e época, predominam variações de classe e de renda. O “realizar-se plenamente” acaba sendo um ideal elitista, variante do idealismo utópico, algo a ser definido pela especulação filosófica que pouco tem a ver com a vida real. Parodiando um dito conhecido do pensador alemão Wilham Dilthey, pelas veias do sujeito cognoscente que o idealismo filosófico construiu, não corre sangue verdadeiro. É apenas uma abstração, um jogo do imaginário, que se torna ausente das verdades dramáticas da vida, com suas discrepâncias, seu tempo histórico e suas imposições reais.  O processo educativo, como nos procura mostrar Emile Durkheim, é sempre relativo às condições sociais. Desta forma teria finalidades adequadas à cultura, à classe social e às funções sociais necessárias.
Temos de convir que o homem solto num espaço ideal, sem vínculos sociais objetivos, só existe no mundo concebido pela imaginação utópica.  O homem é sempre um ser “em situação”. Filho de um tempo, de uma cultura, de uma classe, com as limitações de conhecimento inerentes a estas circunstâncias. Não dispõe de muito para apoiar a resposta a suas indagações a não ser o pensamento herdado. Dentro dele pode até inovar, mas sempre contido pelas limitações do mecanismo auto avaliativo.  
Concebido o processo de educar como produto de uma determinada sociedade, jamais poderia ter por objetivo revelar o absoluto denominado de “potencial humano”.  O potencial de um jovem tupinambá vivendo no Brasil do século XVI é condicionado por sua cultura. Seria um homem realizado como um grande caçador e melhor guerreiro, um voluptuoso formador de crias e um adequado antropófago. O mesmo para qualquer cultura. Na nossa será plenamente realizado um homem que logre acumular poder político e social capaz de colocá-lo no centro de um jogo articulado de privilégios, aliado a uma fortuna cujo único sentido em sua acumulação obsessiva é atingir um nível tal de grandeza que a torne impossível de ser consumida.   Para um samurai do Japão feudal seria matar e morrer honradamente em combate, defendendo gloriosamente o nome de sua Casa Ancestral.  Estes são uns poucos exemplos que exibem o caráter relativo e histórico cultural do conceito de “potencial humano”.
Na verdade, há apenas um absoluto que a visão sociológica respeita: é conceber o sistema educativo como fenômeno original da vida, tendo por objetivo básico transmitir a herança social acumulada ao infante por meio da linguagem. Em qualquer cultura. Em qualquer tempo histórico. Neste caso “educação” estaria acima, além e seria anterior, na escala de tempo, a qualquer esforço formal, institucionalmente estruturado. Seu objetivo seria o de fixar os rumos do controle social, o processo de ajuste do novo ser à cultura onde nasceu e dentro da qual irá se formar como adulto. O infante, desde o berço, estaria sendo “educado”, isto é, preparado para exercer os valores, aceitar como verdade as visões de mundo, os princípios éticos e estéticos da sociedade em que surgiu e da época em que nasceu. A “educação” modelaria as expectativas de comportamento legitimadas pelos papéis sociais aceitos, organizando a personalidade, a forma de ser.
A grande contradição deste “absoluto” é o fato de sintetizar um dado do real inerente a toda e qualquer sociedade. Independe de época ou de cultura para sua objetivação. É, portanto absoluto porque não há sociedade sem ele.   Mas sua forma é relativa porque o processo vai ser construído por cada cultura a seu modo, dependendo da época, do modelo de organização social, do potencial das classes.  Ele sempre resume o imaginário e fixa parâmetros para o objetivo da vida socialmente organizada.  
Neste caso o processo da educação seria uma variante dos sistemas de controle social devido à desigualdade básica de todas as hierarquias. Como não pode haver organização social sem alguma forma de hierarquia, o processo é sempre refratado na prática da vida com vistas à sustentação da estrutura legitimada. O que o faz ideológico por sustentar uma realidade que torna desiguais os destinos dos membros das diferentes classes numa hierarquia de privilégios, direitos e deveres.  O “equilíbrio social” logrado com a educação legitima as formas de organização das disparidades.  Em outras palavras, o “equilíbrio social” é uma transfiguração romantizada dos “desequilíbrios reais” entre os componentes de cada sociedade. Entre o escravo e o senhor, o servo e o aristocrata, o operário e o empresário, o classe média e o milionário, há abismos difíceis de transpor. É necessária muita força coesiva e muita coerência de visões de mundo para dar á injustiça básica da vida, o aspecto de uma verdade teogônica. No entanto é exatamente esta proeza metafísica que o processo social da educação realiza.    
O fenômeno tem inicio na vida familiar, prolonga-se com o aprendizado da linguagem. Nele esta embutida uma forma de ser, na paciente modelagem dos tipos sociais. Por este processo o infante sem fala acaba sendo o menino que só fala o idioma imposto pelo aprendizado.  Pode ser o das tribos nômades mongóis do século XII. Pode vir a ser o garoto canadense urbano, nascido e criado em Toronto, no século XX.
O processo não para ao nível da família. Prossegue nos grupos primários da infância e se alonga no tempo. No mundo moderno tudo se completa pela ação de instituições especializadas. Estas instituições têm papel saliente. Dedicam-se à modelagem do “homem necessário” à vida social do industrialismo de massas. A elas compete a tarefa de formar as novas gerações para a vida prática, para o desempenho das funções necessárias à lógica do mercado.  Em função da dinâmica deste processo a educação moderna é concebida da forma como assinalamos.
Notemos, as instituições formais trabalham a partir de um nível etário em que o jovem já vem culturalmente preparado para incorporar a seu comportamento os costumes, valores, hierarquias, formas de ser e visões de mundo que constituem o imaginário dominante.  O veiculo desta proeza unificadora foi a linguagem aprendida. Por isto, uma consciência coletiva relativamente homogênea caracteriza cada sistema cultural e é como expressão desta consciência que o sistema educativo, segundo Durkheim, deve ser visto como essencialmente “moral”. Tudo porque sua razão de ser tem por objetivo ajustar socialmente o infante. Como este ajustamento envolve necessariamente elementos coercitivos da conduta, noções de certo e de errado, de belo e de feio, de justo e de injusto, expressões concretas de um ideário formado historicamente pela cultura do Grupo, a fixação dos interditos surge como expressões da ética dominante, normatizando os comportamentos legitimados. Com base nesta legitimação desenha-se, no espaço social, o que se entende por válido e socialmente sancionado como bom para a sobrevivência coletiva.  
Na linha de outro importante pensador da educação, o norte americano John Dewey, bem de acordo á mente prática que caracteriza o pragmatismo de sua cultura, é o aspecto utilitário do processo educativo que determina a preferência educacional. Sua normatização.
Difícil aceitar esta posição.  O sacrifício do primogênito, atirado pelos sacerdotes dos templos ao fogo de Baal, nada tem de “útil” para a sociedade e sim de simbólico. Como a arte não é “útil”, nem a filosofia, menos ainda a religião, a não ser que demos ao conceito de “útil” o verniz ideológico de assim considerar tudo que parece bom para manter o equilíbrio social.   Se o sacrifício do primogênito garante o equilíbrio de uma sociedade tão desigual como Cartago o foi, não há porque considerá-lo “útil” sem, ao mesmo tempo, especificar para quem se constrói esta “utilidade”.  Certamente para a nobreza comercial e da terra. Seguramente não para os milhões de escravos e para os camponeses dispersos em sua miséria ancestral. Por exemplo, no capitalismo moderno é considerado “útil’ para o equilíbrio do sistema privatizar os lucros e socializar os prejuízos”. Sob outra perspectiva, talvez a perspectiva Kantiana de algo que só pode ser moral se for respeitoso ao direito do “Outro”, esta “utilidade” pareceria muito mais um ato de pirataria ou de perversidade que algo que possa se assemelhar à qualquer senso elementar de justiça.
Todos os defensores da visão sociológica da educação, independente de suas variações, partem do ponto que destacamos como básico para conceituar o que se entende como “educação”. Consideram o processo como bem anterior a qualquer formalismo ordenado para o preparo do jovem porque seu inicio começa com o aprendizado da linguagem.
Sob esta perspectiva nossa indagação- guia sobre como se pode definir “educação”, seria respondida como o fez E. Durkheim em sua obra : é o processo de socialização diuturno e metódico das novas gerações, cujo objetivo é o ajuste do individuo à vida legitimada pelo Grupo ao qual pertence.
 Exploradas estas duas vertentes é possível perceber que o consenso moderno esconde imensas divergências porque reflete a visão de mundo dominante no industrialismo de massas.  Ele não revela um outro aspecto do processo educativo que certamente influiria bastante na sua conceituação, o de ser a socialização do jovem um fenômeno de síntese ideológica, como vimos mais acima. A ideologia é posição a priori, emotiva, um ato de fé. Toda sociedade, sendo uma expressão desta síntese vai instituindo o seu mundo, sua forma de ver, sua ética.  Neste caso, é forçoso admitir que o sistema educativo, sendo baseado na orientação, coerção e formação do Ser é viciado desde a origem. Tanto o “eduscere”, quanto o utilitarismo de Dewey ou o funcionalismo de Durkheim não respondem de maneira convincente a este vício de origem que acaba formando a consciência ingênua, a que aceita sem questionamentos críticos uma verdade relativa e problemática. A consciência ingênua é a que aceita o mundo como é; a consciência crítica é a que nos leva a problematizar este mundo e seus valores.   
            Neste ponto coloca-se o problema da “autonomia”. O conceito de “autonomia” para ter realidade operativa dentro do universo coercitivo que caracteriza a educação como ajuste social necessita algumas considerações. Para sair do dilema Durkheim encontra a saída no conhecimento transmitido. Mas se este conhecimento tem por finalidade o controle social não estamos com boa resposta. Durkheim acrescenta o lado dinâmico e criativo do conhecimento. Ele tende sempre, em suas aberturas inovativas, a ajustar-se a uma realidade em mudança, aos imprevistos da vida, aos desafios que surgem, A vida não é, jamais será, uma estrada tranqüila, com sinais indicativos do caminho a seguir. Nem as sociedades são estáticas. Elas se inserem num conjunto de imprevistos e acasos em choque com a vontade, de sustos e dilemas simultaneamente colocados ante o irracionalismo das coisas e a surpresa dos fatos. Tudo colabora para abrir espaços onde floresce a autonomia decisória. Aceitamos que esta autonomia é relativizada porque a percepção dos fatos o é. Giramos em torno de um centro de coesão espiritual que ordena as expectativas de comportamento. A “autonomia”, portanto é uma forma de liberdade aprisionada a seus próprios limites. Não há incalculabilidade nas reações. No uso de nossa “autonomia” decisória, mesmo quando estas ações representam dissidências e paradoxos, seguimos em resposta aos desafios da vida tal como surgem em nossa cultura e época. Tudo se relaciona, de algum modo, ao mundo em que nos formamos. Quando Max Weber nos diz que a “incalculabilidade é um privilégio do insano” está sublinhando a existência desta coerente forma de ser que nos iguala em nossas diferenças. A proposta divergente parte dos fatos que surgem no mundo real e reage a eles. E compõe um quadro de dinamismo relativo. Dentro dele exercemos nossa autonomia.
A importância de se sublinhar a autonomia de decisões e a contextualização das ações desafiantes é sua capacidade de mudar o rumo das coisas, de problematizar o consenso, de debater alternativas. No caso do debate sobre os problemas da educação moderna, reconhecemos como é limitada a capacidade autônoma de pensarmos as coisas. Se nos fosse possível desenvolvê-la a pleno, sem os castigos do desemprego, seria até viável partir em busca da ilha da utopia para reajustar o homem a ele mesmo, reconciliando a dinâmica do viver numa sociedade de mercado á ética da responsabilidade social. Seguir devastando o mundo, ignorando a violência, submetendo os mais fracos, nutrindo o narcisismo dos arquitetos do caos contemporâneo, é admitir que o verdadeiro racionalismo é mais que seguir a lógica dos fatos. É muitas vezes, contrariá-la, tentando superar a ultima alienação que o homem desenvolveu a de viver as pequenas servidões do cotidiano como se elas contivessem a essência da verdade.
Nosso destino não pode ser o vazio da técnica pela técnica, não somos estranhos à vida do espírito e temos de nele encontrar forças para balancear as necessidades imperativas do mercado com a consciência de sermos todos solidários uns aos outros na grande odisséia da vida social. Não podemos permitir que a máquina produtiva que montamos acabe por nos devorar como no mito de Frankenstein. Tudo começa por uma reflexão crítica sobre como conciliar tecnologia e humanismo, vida e poesia, maquinismo e autonomia. Como conduzir, enfim, o processo educativo.
Concluindo podemos definir educação como o processo que ajusta o homem à vida social, é certo, preparando-o para o exercício de uma função especifica no sistema produtivo, é correto, mas sem esquecer as bases humanísticas que viabilizarão a consciência crítica, denunciando as ideologias do conformismo, criando sistemas que colaborem na formação de sua  autonomia.

CEI - Centro de Estudos Internacionais[Parceiro de Literacia]