quinta-feira, maio 20


A HERMENÊUTICA LITERÁRIA

Rogel Samuel




Ricoeur chega a falar da inclusão do problema hermenêutico sobre o método fenomenológico, pois o problema da hermenêutica constituiu-se muito anteriormente à fenomenologia de Husserl.
O problema se coloca nos limites da exegese, isto é, do método de compreensão de textos a partir de sua intencionalidade, sob duas “vias”: a via “curta”, ou heideggeriana; e a via “longa”, ou aquela de que se pretende falar abaixo[i].
A chamada “via curta” é a da ontologia da compreensão, que lança os problemas do método no plano de uma ontologia do ser finito, para com tal método compreender não como modo de conhecimento, mas como modo de ser. Isto pode ser dito de outra maneira, diz Ricoeur, ou seja: O que é um ser cuja existência consiste precisamente em compreender? Essa é a pergunta da ontologia da compreensão[ii].
A chamada “via longa” tem a ambição de chegar a uma ontologia, mas gradativamente. Seu método é de uma epistemologia da compreensão, que se estende sobre as ciências, que constitui mesmo como reflexão sobre os diversos saberes, sobre a psicanálise, sobre a fenomenologia da religião etc., procurando ver quando esta epistemologia da interpretação é atingida ou animada, solicitada por uma ontologia da compreensão, que coloca o ser-conhecer como centro de seu pensar, o ser cujo ser é conhecer, onde o sujeito é o pólo intencional que se coloca como sujeito cognoscente[iii].
Este método liberta-se da tradição positivista, não é mais a continuidade das ciências do espírito que imitam as ciências da natureza: “Diz respeito a um ser junto ao ser, anterior ao encontro de entes particulares”[iv]. Coloca em frente do processo cognoscente a presença do interprete de seu objeto, como traço ontológico. O compreender torna-se um aspecto de um projeto do ser, de uma abertura ao ser. E a questão da verdade não é mais adequação e método, mas manifestação, presentificação do ser, para um ser cuja existência consiste na compreensão do ser mesmo.

Este método confere um problema de inteligência de textos, não com o enfoque semântico, mas com a ótica reflexiva, que parte de Schleiermacher e passa por Dilthey, que vê os textos como expressões da vida fixada pela escrita, através de conexões psíquicas e de encadeamentos históricos, pois o símbolo é uma estrutura de significação em que um sentido direto designa por acréscimo outro sentido indireto que só pode ser apreendido através do primeiro[v].
A interpretação consiste em decifrar o sentido oculto no sentido aparente, em desdobrar os diversos graus de interpretação implicados numa significação literal.
Símbolo e interpretação se tornam, assim, correlatos pois só há interpretação onde houver sentido múltiplo, e é na interpretação que a pluralidade dos sentidos torna-se manifesta.
Assim toda hermenêutica é, no fim, compreensão de si mesma. Explícita ou implicitamente, a hermenêutica é a compreensão de si mediante a compreensão do outro, pois tal método se coloca como auto-reflexão na interpretação de texto. O máximo de interpretação ocorre quando o sujeito compreende a si mesmo compreendendo o texto. E, interpretando o lugar da literatura no conjunto complexo da sociedade moderna, o sujeito passa a ser o ser cujo ser é conhecer, esse traço ontológico que desvela no homem, questionando qual o papel do homem mesmo no panorama da sociedade de organização do complexo industrial-militar, pois se este é o     mundo do homem, passa a ser o mundo que utiliza o homem como meio-produto, que se sustenta no homem, onde o homem não é mais sujeito, mas objeto, onde não mais é fim, mas recurso de produção de uma riqueza alienada dos valores humanos.
Assim, o questionamento da ontologia da interpretação se coloca sempre que a existência é colocada na noção de sua coexistência ou existência social articulada com as forças mecânicas de uma tecnologia-científica que não coloca o ser do homem como base de seu desenvolvimento. Trata-se de ver se os sistemas econômicos e de produção de riquezas deixam algum espaço para a reflexão auto-compreensiva, e que não seja esta atividade o tipo de proposição de uma burguesia que, entediada com a ociosidade em que vivia, ou traumatizada com as guerras mundiais devastadoras, se põe a pensar em sua própria decadência, temendo o seu fim. A reflexão ontológica se infiltra, pois na interpretação sociológica, não compreendendo o social sem o existencial.
Para Schleiermacher, a hermenêutica era a arte de evitar a má compreensão.
Linge diz que a hermenêutica “tem sua origem nas brechas da intersubjetividade”[vi]. David Linge é o editor do Philosophical hermeutics de Gadamer. Nela, o passado tem grande poder no fenômeno da compreensão:
De acordo com sua definição original, hermenêutica é a arte de esclarecer e mediatizar por nossos esforços de interpretação, o que foi dito por pessoas que encontramos na tradição. A hermenêutica opera todas as vezes que o que foi dito não é imediatamente inteligível[vii].

Gadamer compreende o exercício da razão hermenêutica como uma dupla compreensão. Compreender não é para ele, uma mera repetição do conhecimento. Ele vê a razão hermenêutica postulada como dupla consciência, a partir de duas experiências de alienação que encontra na experiência concreta: a experiência da alienação da consciência estética, e a experiência da alienação histórica. Quando o problema é o conhecimento de si, esta dupla consciência se exerce no jogo da consciência/inconsciência.
Assim, se o sujeito tem sede, e sede de um refrigerante, temos de considerar que há, por trás da sede real concreta da consciência, o resultado de uma incompreensão gerada pela propaganda, que é uma invasão na vida “privada” pela opinião pública.
Ora, como alienação do julgamento estético, pode dar-se que o peso da autoridade condicione, por uma espécie de propaganda cultural, o julgamento do valor.
A alienação da consciência política faz com que possamos considerar naturais os fatos que, vistos por olhos críticos, são realmente dolorosos de aceitar, mas com que estamos muito acostumados a ponto de julgá-los “naturais”.
Hermenêutica é a teoria ou arte da interpretação.
Como “arte” inscreve-se numa tradição do último período da Antigüidade, ou de mais longe, em que existia a chamada filosofia prática que viria até o final do séc.XVII e constituía o marco sistemático de todas as “artes” na medida em que estavam a serviço da “polis”[viii].
Filosofia aí significa “ciência”, isto é, incluía os conhecimentos objetivos e os conhecimentos da verdade, desde que não fossem adquiridos pela empiria do trabalho.
A filosofia prática se opunha à filosofia teórica que abarcava a “física” (saber da natureza), a matemática, a teologia, a política. A oposição moderna entre teoria e práxis nada tem a ver com isso, pois a teoria era uma práxis, o supremo nível da práxis.
“Práxis” pode ser explicada como o comportamento dos seres vivos que se encontra entre a atividade e o encontrar-se em um estado ou situação.
O homem, além de uma práxis, dispõe de uma “prohairesis”, isto é, uma antecipação e escolha previa.
A delimitação da “práxis” humana envolve a ciência teórica (práxis suprema) e a “poiesis” (fabricação que se baseia no saber, base econômica da vida da pólis)[ix]
Portanto, a Hermenêutica, como teoria da interpretação, não é simplesmente uma teoria, mas ela esboçou sempre a exigência de que sua reflexão sobre a interpretação promova a práxis.
Por exemplo, diz Gadamer que a “Querelle des Ancies et des modernes” foi uma preparação para o despertar da consciência histórica moderna; e o Romantismo, que se converteu em pioneiro dessa consciência histórica, na volta as fontes originais.
Assim, um dos grandes méritos de Heidegger foi desfazer a evidência e mostrar a maneira como o pensamento moderno, sob o domínio do conceito de ser “esquecido”,  criou o não muito  claro conceito de consciência, que representa o princípio da filosofia moderna[x].
A Hermenêutica põe a certeza iluminista em posição problematizadora. Questiona a evidência, recusa-se a explicar completamente um fato dado, a calculá-lo, a aprender a produzi-lo. “Uma interpretação definitiva parece ser uma contradição em si mesma”[xi], a interpretação faz referência à finitude do ser humano e do seu conhecimento, pois mais importante do que interpretar o claro conteúdo de um enunciado, é perguntar pelos interesses que nos guiam.
A Hermenêutica filosófica está mais interessada nas perguntas do que nas respostas. Só quando compreende o sentido motivador da pergunta pode começar a buscar uma resposta: temos de compreender o que se esconde por trás da pergunta:
Só teremos alguma probabilidade de compreender os enunciados que nos preocupam se reconhecermos neles nossas próprias perguntas[xii].

Isso porque a vida se encontra numa espécie de equilíbrio entre nossos impulsos inconscientes e nossas motivações conscientes.
Por isso, diz Gershom Scholem
a interpretação alegórica aparece espontaneamente toda vez que idéias novas entram em conflito com as de um livro sagrado que parecem contradizer, necessitando assim de um processo de conciliação[xiii].

Diz Scholem, no seu artigo “A significação da Lei na mística judia”, que
Muitos, e entre os espíritos cabalísticos os mais criadores, adotaram este método, encontrado apropriada tendência a transmitir suas idéias pessoais, ao mesmo tempo que davam a aparência de que estas idéias saíam das Escrituras. Não é fácil sempre dizer num determinado caso se é a Escritura que verdadeiramente deu impulso à exegese; ou se, ao contrário, a exegese é uma criação artificial, destinada a cobrir o fosso que separa freqüentemente a visão antiga das coisas da nova visão[xiv].

Escrevendo sobre Scholem, Habermas diz que o filólogo na reflexão sobre seu objeto se transforma em teórico[xv].
A Hermenêutica se inscreve nos domínios do conhecer, assim como a política nos do agir, e a Estética nos do sentir.
É uma tarefa que vem de Kant que, no espírito geral da crítica, dizia que deve-se medir a capacidade do conhecer antes de se enfrentara natureza do ser[xvi].
O homem não é radicalmente um estranho para o homem, porque fornece sinais de sua própria existência. Compreender esses sinais é compreender o homem[xvii].

Por isto é que o psiquismo não pode ser atingido, mas podemos captar aquilo que ele visa. Husserl estabelecia que o psiquismo se caracterizava por sua intencionalidade, ou seja, por visar um sentido capaz de ser identificado. “O que sou para mim mesmo só pode ser atingido através das objetivações de minha própria vida”[xviii].
A compreensão da vida só pode ser atingida quando a subjetividade se objetiva, isto é, na objetividade relativa das obras de arte, na religião e na filosofia é que a vida se exprime de modo mais completo.
É nesse sentido que se reparam falar (que remete ao falante) e dizer (que se remete as próprias coisas ditas) de Heidegger.
Assim o texto é a mediação pela qual nos compreendemos à nos mesmos, através do “mundo da obra” de que fala Ricoeur.
A interpretação se apropria de uma proposição de mundo que se encontra não atrás do texto, “como uma espécie de intenção oculta”, mas diante dele, como aquilo que a obra desvenda, descobre revela. “Por conseguinte, compreender é compreender-se diante do texto” 


Rogel Samuel é doutor em letras, prof. aposentado da UFRJ e autor de “Novo manual de teoria literária” (5ª ed. Editora Vozes).
http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/



REFERÊNCIAS

RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977. 172p.
------. História e verdade. Rio de Janeiro, Forense, s/d. 340p.
------. O conflito das interpretações. Ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro, Iinago, 1978. 419p.
GADAMER, Hans-Georg. A razão na época da Ciência. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1983. 105p.
------. Philosophical hermeneutics. Berkeley/Los Angeles/London, University of California Press, 1977. 243p.
------. Verité et méthode. Les grandes lignes d’une hermeneutique philosophiques. Paris, Editions du Seuil, 1976. 349p.
SCHOLEM, Gershom G. A cabala e seu simbolismo. São Paulo, Perspectiva, 1978. 240p.
------. La signification de la Loi dans la Mystique juive 1. Diogène, Paris (14): 45-60. Abr. 1956a.
------. La signification de la Loi dans la Mystique Juive II. Diogène, Paris (15): 76-114. jul. 1956b.




[1] RICOEUR, P. (1978), p.29.[2] Ibidem p.10.;[3] Ibidem p.13.[4] Ibidem p.12.[5] Ibidem p.15.
[6] GADAMER, H. G. (1977), p.XII.[7] Ibidem p.98.[8] GADAMER, H. G. (1983), p.57.[9] Ibidem p.60.[10] Ibidem p.68.[11] Ibidem p.71.
[12] Ibidem p.73.[13] SCHOLEM, G.G. (1956), p.46.
[14] Ibidem p.46.[15] HABERMAS, J. (1980a), p.122.[16] RICOEUR, P. (1977), p.21.[17] Ibidem p.25.[18] Ibidem p.27.[19] Ibidem p.58.





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5 comentários:

  1. Esta Revista tem qualidade única, diferente de tudo já visto no mundo virtual.
    Sou professora de literatura em Vitória, e estou utilizando como referência para meus alunos.
    Desenvolvemos trabalhos de leitura critica em oficinas , e o material aqui digulgado tem sido de grande utilidade.
    Parabéns e Obrigada por tão grandiosa iniciativa.
    Maria Amália de Mello e Silva.

    PS. Vamos trabalhar o texto do Professor Affonso Romano - O elefante contemporâneo, como exercício de avaliação .
    Vocês teriam interesse em receber as sinteses elaboradas pelos Alunos?

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  2. ana lúcia

    gostei de ler este artigo. muito interessante no que á crítica literária e à análise de textos diz respeito.

    quanto à proposta da maria amália de mello e silva é de louvar e em nome pessoal gostaria de ver aqui as sínteses elaboradas por alunos acerca do texto de affonso romano de sant'ana.

    josé félix

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  3. Caro José Félix,
    Obrigada pela visita, concordo plenamente com vc. , este artigo de Rogel Samuel é de fundamental importância para que possamos alargar nossos olhares sobre a leitura critica, única via possível do verdadeiro aprendizado.
    Sobre a proposta da Professora Maria Amália de Mello e Silva, já escrevi em pvt, estabelecemos um bom contato para viabilizar o intercâmbio sugerido por ela, no tocante a produção literária de seus alunos.
    Diante a proposição da ilustre Professora, teremos em Literacia uma nova seção - Produções Litero Culturais [título ainda provisório], objetivando destacar com exclusividade as ações educacionais da Língua Portuguesa nas diferentes Instituições de Ensino.
    Este evento sugerido pela Professora, me trouxe muita alegria, pois esta a missão maior pensada para Literacia, promover o aprendizado continuado e um re-ligare dos caminhos do saber.
    Oportuno repetir aqui, o que disse a Maria Amália: - não somos ilhas, somos sim arquipélagos, e em assim sendo, todos os horizontes se descortinam.
    Pensar com... pensar junto!
    Esta a grande lição recebida de Maria Amália de Mello e Silva.
    Abs, anamerij

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  4. É inegável a importância da hermenêutica literária nestes espaços de escrita e de leitura. Ela pode até colmatar grandes lacunas, criando pontes entre autor, leitor e texto, tríade comunicacional imprescindível no sempre complexo processo de interpretação.
    É certo que nós comprendemos sempre a partir do nosso próprio horizonte, mas a interacção entre este e o horizonte do texto altera a nossa própria compreensão e ajuda-nos a ir para além do texto, a alcançar o que foi dito, mas que não está nas palavras, tarefa nada fácil, por vezes (precisamos que Hermes faça a tradução...). A interpretação acaba sempre onde começa a minha ignorância das entrelinhas, a minha dificuldade em "decifrar o sentido oculto no sentido aparente"...
    Por isso, Richard Palmer afirmou que "se é preciso ser-se um bom ouvinte para escutar aquilo que é realmente dito, ainda é preciso ser-
    -se melhor para ouvir o que não foi dito ou não pôde ser dito".
    Artigos como este, são muito úteis nesta aventura da interpretação. Muito obrigada, Rogel Samuel! Aguardo e agradeço, desde já, o seu regresso a este espaço.
    E aguardo também, com muito interesse e curiosidade, as sínteses elaboradas pelos alunos da Professora Maria Amália de Mello e Silva.

    Maria João Oliveira

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  5. Tenho indicado aos amigos a leitura dos textos apresentados na Revista Literácia,principalmente àqueles que gostam da arte de escrever,por tudo que ela nos ensina.
    A Literácia vem construindo uma nova maneira de se ver e de se ler no mundo virtual.O texto do professor doutor Samuel é prova disso.

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