sexta-feira, dezembro 3

 A Palavra “Criatividade”- 
 Modos de Usar 

Gabriel PerisséProfessor da FASM
Doutor em Educação - FEUSP


A palavra “criatividade” é tão atraente quanto as palavras “amor”, “liberdade”, “auto-realização”. E igualmente indefesa (e potencialmente perigosa) quando empregada de modo abusivo, no sentido latino de abusus, em que o prefixo ab remete, não a uma idéia de ponto de partida (como é o caso da preposição ab), mas às noções de afastamento, ausência, privação.
Abusar de uma palavra, portanto, é não usá-la. É privar-nos de sua essência, de sua força e beleza originais, contrabandeando um pouco (ou muito) dessa força e dessa beleza para a satisfação de um objetivo que não é propriamente o de esclarecer as mentes. Abusar de uma palavra é manipulá-la, a fim de manipular pessoas, o que, por sua vez, supõe tratar (destratar!) as pessoas como não-pessoas, a violentá-las.
O abuso verbal é uma violência, e consiste em confundir o ouvinte ou o leitor. Há várias maneiras de realizar este abuso. Uma delas é afastar a palavra do seu contexto autêntico e inseri-la em outro, com o intuito de “convencer”. Eis aí uma forma de pôr em  prática o malicioso conselho de Harry Truman: “If you can't convince them, confuse them.”
Confundir, neste caso, é atrair sem enriquecer, sem ensinar, sem promover a nossa dignidade.
A beleza de um corpo feminino (para usarmos a eloqüência das imagens), associado às curvas de um novo carro, atrai o consumidor, instalado ingenuamente diante da televisão. Seu desejo de possuir a beleza confunde-se com o seu desejo de comprar um meio de transporte. O modelo do carro é cobiçado por causa da modelo no carro... E, semanas ou meses depois, o homem compra o carro, objeto erotizado, querendo também adquirir, como se fosse uma decorrência lógica da compra, a beleza de outros corpos femininos. Por força do status simbolizado nas linhas aerodinâmicas do automóvel, o motorista quer agora receber o olhar e o sorriso de uma bela mulher. O slogan (numa voz feminina suave e envolvente...) poderá dizer, por exemplo: “Nestas curvas, o caminho do sucesso.”
O empobrecimento e o insucesso se evidenciam mais tarde, numa espiral de decepção, tristeza e angústia, quando começamos a sentir os efeitos do vazio que nos restou, quando começamos a sofrer as conseqüências dessa confusão entre realidades que não deveriam surgir num mesmo nível de apresentação. O carro quebrou, logo, sou incapaz de amar e ser amado...
Este exemplo do carro erotizado, em que a mulher é reduzida a um brinde (ilusório, porque não virá no pacote...) e o homem, a mero cliente, refere-se à manipulação comercial cotidiana, em que somos seduzidos e arrastados a tomar decisões de compra.
Tal manipulação comercial, porém, é menos perigosa do que a manipulação das idéias e atitudes. A manipulação comercial também impõe, de modo subliminar, idéias e atitudes: a idéia da capacidade de consumo como índice de progresso pessoal, a atitude imediatista de querer a realização dos nossos desejos hoje, agora, já... mas o faz secundariamente. A manipulação ideológica objetiva questões fundamentais como a política, a ética, a religião, e é exercida por profissionais da comunicação com a maestria de quem sabe tocar nossos pontos fracos, “acionar” os “mecanismos” de nossas carências, produzindo fascinação e adesão irrefletida.
Somos carentes de criatividade e, por isso, sentimo-nos atraídos por visões de criatividade que, no entanto, nem sempre são das mais criativas...
A fim de analisarmos com mais concretude o uso e o abuso da palavra “criatividade”, pensei em utilizar como incentivo inicial à análise um livro de auto-ajuda chamado Divórcio criativo, de dois autores norte-americanos, Mel Krantzler e Pat Krantzler [1] .
A edição brasileira traz em sua capa duas fotos separadas. Numa, à direita, o rosto sorridente de um homem com seus 40 anos. Na outra, à esquerda, o rosto igualmente sorridente de uma mulher mais ou menos da mesma idade. O subtítulo — A separação sem traumas — indica que esses dois rostos separados, mas felizes (esfuziantes mesmo) são de pessoas que souberam divorciar-se com inteligência e maturidade. O release distribuído pela editora atua como uma “tradução” dessa suposta criatividade:
“Este é um livro corajoso, destinado a quem já se decidiu pelo divórcio, está em processo de separação ou já separado. Não trata da fase de repensar sobre esta decisão, mas ajuda as pessoas a olharem para a frente.”
O primeiro parágrafo inicia-se e termina com duas expressões significativas. O livro é corajoso e ajuda o leitor a olhar para a frente. A coragem e essa atitude de olhar para o futuro são sinais de criatividade. The courage to create, um livro de Rollo May, conceitua criatividade e coragem (coragem de crescer e superar-se) como duas realidades intrinsecamente unidas: “A coragem é necessária para que o homem possa ser e vir a ser. Para que o eu seja é preciso afirmá-lo e comprometer-se. Essa é a diferença entre os seres humanos e o resto da natureza. A bolota transforma-se em carvalho por crescimento automático; nenhum compromisso consciente é necessário. O filhote transforma-se em gato pelo instinto. Nessas criaturas, natureza e ser são idênticos. Mas um homem ou uma mulher tornam-se humanos por vontade própria e por seu compromisso com essa escolha.” [2]
Quem não apreciará um convite à coragem criativa?
O curioso, porém, voltando ao primeiro parágrafo do release, é que está descartada a “fase de repensar”, verbo decisivo numa vida humana criativa. Repensar é reler, é reconstruir o vivido, é voltar-se para o acontecido, não pelo mórbido apego ao passado, mas com o intuito de reavaliar, de acordo com as experiências adquiridas, o que se fez, as decisões que foram tomadas, os erros cometidos, os rumos escolhidos, com a finalidade ainda mais ambiciosa de aferir, conforme o conselho do poeta Píndaro, se de fato estamos nos tornando aquilo que somos após aquelas decisões, aqueles rumos escolhidos etc.
O livro sobre o divórcio criativo, portanto, não é um livro para repensar na atitude tomada. É preciso ir em frente... e o segundo parágrafo explica por quê: “Se hoje em dia, aproximadamente metade dos casamentos termina em divórcio, é necessário saber o que fazer para que ele não torne a vida de ambos mais dolorosa.”
O savoir-faire, no caso, consiste em evitar o agravamento da dor, uma vez que as estatísticas comprovam que (aproximadamente) metade dos casamentos termina em separação, um dado que seria necessário repensar. Repensar, contudo, é reabrir feridas, é aumentar a dor que o divórcio supõe. Vamos em frente, não repensemos, sejamos criativos... E, é bem verdade, num trecho adiante, lemos que “não se trata de um livro filosófico, mas muito concreto, sob um olhar da Psicologia para leigos, com uma linguagem bastante agradável”.
Do terceiro parágrafo do release destaquemos ainda um último trecho significativo: “Assim como em qualquer grande mudança de vida, o divórcio pode propiciar uma oportunidade de criar uma nova e positiva meta para o desenvolvimento pessoal.”
Novamente palavras belas e fortes: “propiciar”, “oportunidade”, “criar”, “nova”, “positiva”, “meta”, “desenvolvimento”... num contexto de fracasso, de desilusão, de decepção, palavras estas nada agradáveis, que refletem, no entanto, realisticamente, o estado de um casal que se divorcia.
A intenção dos autores do livro é motivar o(a) leitor(a) que se encontra acabrunhado pela dor da separação a, corajosamente, não qualificar o divórcio como um fracasso (fracasso não vende...), mas torná-lo uma “experiência criativa”, como expressam na página 25: “A palavra ‘criativa’ significa tornar alguma coisa nova a partir de uma situação. Isso significa responder ao divórcio como um desafio para viver uma vida melhor, no lugar de continuar a viver como se fosse uma vítima de um acidente de carro. Aprender com o passado, no lugar de ficar repetindo esse passado — eis a chave para um amanhã mais brilhante.”
Repensarmos o conceito de “criatividade” é perceber quando o seu uso caracteriza ou não um abuso. Terá sido um abuso empregar o adjetivo “criativo” ao lado do substantivo “divórcio”? Não estaremos confundindo dois níveis de realidade, em que a criatividade é retirada do seu contexto autêntico, produtivo, e associada a um outro contexto para que, neste outro, a força e a beleza de ser criativo compensem e, de certa forma, mascarem e justifiquem o naufrágio de um projeto de vida a dois? Não estaremos aqui, ainda que indiretamente, defendendo e legitimando o divórcio, já que podemos experimentar um “divórcio criativo”, capaz de, no final das contas, tornar-nos mais humanos e mais felizes?
A resposta, seja ela qual for, não deve ser precipitada. Os autores aqui citados diriam que não, que não se trata de um abuso. Pelo contrário, o divórcio precisa ser criativo, e, para prová-lo, escreveram o livro: “Nosso livro é uma tentativa de dividir com você os caminhos que você pode percorrer para fazer coisas positivas acontecerem, superando assim os acontecimentos traumáticos inerentes ao processo de divórcio.” [3]
Não se trata agora, neste artigo, de condenar em bloco a argumentação dos autores que, ao longo do livro, de certo modo, acabam ajudando o leitor a repensar muitas de suas atitudes perante o amor. E é verdade que, mesmo no caso extremo de um casamento falido, podemos, sim, fomentar a esperança de uma vida melhor. O importante é saber em que bases realmente criativas essa esperança e essa vida melhor estão sendo construídas.
Criatividade, recorrendo a um conceito artístico (e existiria outro modo de qualificar o conceito de criatividade?), é “poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse ‘novo’, de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar.” [4]
Estes quatro verbos são extremamente sugestivos: relacionar, ordenar, configurar e significar. Em todos eles nota-se a ausência de divórcios. O êxtase da criação consiste em criar relações, aprofundar relações, em ordenar (palavra que etimologicamente remete a urdir, sem confundir...) essas relações, configurando, estruturando uma realidade significativa e, por conseguinte, valiosa.
Um vida criativa é uma vida que promove relações, promove compreensão, promove encontro e promove união. O ser humano, ser relacional por definição, estabelece vínculos significativos entre realidades aparentemente distantes. Encontrando afinidades íntimas entre coisas e pessoas, recria a realidade. Recriar a realidade consiste em operar novos modos de unidade em diferentes planos da existência.
Para voltar ao tema do divórcio, quando usamos as palavras “divórcio”, “separação”, é porque, implicitamente, já concebemos o casamento como uma união. Não se separa aquilo que não se uniu. Mas há ainda outro aspecto a salientar. A separação conjugal, falando rigorosamente, não é separar dois objetos. Se eu separo dois objetos que estavam juntos dentro de uma gaveta, esta separação pode ser conveniente (ou não), num nível em que o “relacionamento” carece do mesmo sentido pessoal que ocorre no casamento. Ou, ainda em outros termos, a separação entre duas pessoas que criaram uma unidade conjugal é um ato necessariamente traumático que requer avaliação mais radical e mais... corajosa.
É preciso ter a coragem de qualificar o divórcio como um ato anti-criativo.
Tal afirmação, porém, só fará sentido se definirmos com mais precisão em que consiste a criatividade conjugal, a fidelidade criativa, o amor criativo.
Em primeiro lugar, porém, é preciso que nos livremos da armadilha dilemática que consiste em apresentar a questão nos termos casamento indissolúvel x casamento dissolúvel. Apresentado assim o problema, caímos uma vez mais no perigo de discutir infindavelmente num plano inadequado. A indissolubilidade do casamento não está no mesmo nível da defesa que se faz da sua indissolubilidade. Cabe-nos aprofundar um pouco mais na essência mesma do casamento criativo e não simplesmente opor argumentos a favor e contra.
O que é, afinal, o casamento criativo? Não estaríamos nós também abusando do adjetivo? O que há de especificamente criativo nesta expressão, e como depreender desta reflexão um conceito um pouco mais nítido de “criatividade”?
A caricatura do casamento nós a conhecemos, quando deparamos com experiências conjugais marcadas pelo medo, pelo egoísmo, pela falta de verdadeiro diálogo, pelo sadismo até.
Chico Buarque de Holanda o retrata brilhantemente no seu O casamento dos pequenos burgueses, da peça Ópera do malandro:

Ele faz o noivo corretoEla faz que quase desmaiaVão viver sob o mesmo tetoAté que a casa caia
Até que a casa caia
Ele é o empregado discretoEla engoma o seu colarinhoVão viver sob o mesmo tetoAté explodir o ninho
Até explodir o ninho
Ele faz o macho irrequietoEla faz crianças de monteVão viver sob o mesmo tetoAté secar a fonte
Até secar a fonte
Ele é o funcionário completoEla aprende a fazer suspirosVão viver sob o mesmo tetoAté trocarem tiros
Até trocarem tiros
Ele tem um caso secretoEla diz que não sai dos trilhosVão viver sob o mesmo tetoAté casarem os filhos
Até casarem os filhos
Ele fala de cianuretoEla sonha com formicidaVão viver sob o mesmo tetoAté que alguém decida
Até que alguém decida
Ele tem um velho projetoEla tem um monte de estriasVão viver sob o mesmo tetoAté o fim dos dias
Até o fim dos dias
Ele às vezes cede um afetoEla só se despe no escuroVão viver sob o mesmo tetoAté um breve futuro
Até um breve futuro
Ela esquenta a papa do netoEle quase que fez fortunaVão viver sob o mesmo tetoAté que a morte os una
Até que a morte os una

A “união” deste casal é puramente exterior, formal, periférica: vivem sob o mesmo teto, têm relações sexuais, mas não uniram as suas vidas numa só vida, não criaram um âmbito de encontro e de amor entre eles, não criaram uma unidade real. A ironia do “até que a morte os una”, fazendo pensar no “até que a morte os separe”, é uma declaração poética que nos faz ver a morte do amor e como o casal não tomou consciência e nada fez para evitar a vitória da dissolução, ainda que disfarçada pela “honra”, pela “fidelidade”.
Em termos artísticos, o casamento não foi, para este casal, uma obra de arte. Não houve criatividade e, como dizia Nietzsche, onde não há criatividade... cresce o deserto.
O contra-exemplo aponta para as condições de uma vida conjugal criativa em que o decisivo é o ponto de partida, o ideal que traçamos imaginariamente e que norteará, a seguir, um comportamento compatível com a dignidade das pessoas que se entregam no amor, ainda que precisem atravessar momentos de dificuldades. Dificuldades que lembram as que enfrentam todos os artistas durante o processo da criação de um poema, de um quadro, de uma escultura.
A noção de fidelidade criativa no casamento pode ajudar-nos a recuperar o conteúdo do conceito de “criatividade”, associado ao de “unidade”. Uma unidade que não vem “pronta”, e que é justamente a tarefa a que se propõem aqueles que se amam. Como tramar essa unidade?
Alfonso López Quintás oferece uma definição de unidade no contexto do encontro: “La relación de encuentro no es el resultado automático de la vecindad física entre dos o más seres. Es el fruto de una conquista, como todo acto creador, y exige determinadas condiciones en los seres que lo realizan [5] .
Que condições são estas? Uma, importantíssima, é a de não usar o outro, é a de cultivar uma serena aceitação do outro, aceitando-o como um dom, conhecendo-o, e suscitando um projeto comum de vida. Tal projeto realmente... projeta (e protege) aqueles que se encontram. Um pintor, por exemplo, que simplesmente usa o pincel e as cores para retratar o que quer... ainda não se entregou verdadeiramente ao ato criativo de pintar. Não entenderia, talvez, as palavras de uma jovem artista que vive um casamento intenso com a arte: “Quando pinto um quadro, preciso estar sintonizada com ele. O tema que surge geralmente está ligado a um momento ou fase da minha vida. Sonhos, metáforas, interpretações pessoais sobre um assunto. O pincel guia minha mão, que guia meus olhos, minha mente, minha imaginação, que por sua vez guia o pincel.” [6]
O artista comprometido com sua arte não pensa em divorciar-se dela, uma vez que sua arte é o ar que respira, é condição para que continue apaixonado pela vida. O artista defende a sua arte porque a sua arte o define, o ampara, o orienta, dá-lhe um sentido existencial. Há uma sintonia, uma ligação, e uma reversibilidade, no caso, entre quem pinta e o pincel.
O maior martírio para um artista criativo é ver-se privado da possibilidade de continuar criando. Esta separação é a sua morte.
Num casamento em que há unidade verdadeira, um e outro “se desenham”, “se esculpem”, interpretam diariamente uma peça teatral rica em improvisação, interpretam uma sinfonia rica em variações sobre o mesmo tema, surpreendem-se cotidianamente, como o poeta que todos os dias admira-se com as mesmas palavras, como o criador que não se cansa de saborear as possibilidades virtualmente infinitas da sua arte, e por isso desperta todas as manhãs com disposição renovada de criar.
A criatividade não é uma sucessão ininterrupta de sucessos. A dificuldade está presente, as limitações existem, os conflitos são uma realidade, há problemas, há períodos de incerteza, de infecundidade... tudo isso não assusta o ser criativo. O verdadeiro fracasso de um artista, de uma pessoa criativa, está no momento em que ela desiste, em que ela, tencionando a ortografia, dexiste... e, portanto, deixa de existir no nível de criatividade a que foi chamada.
Um casamento criativo não é um casamento em que as coisas se resolvem num passe de mágica (ou num passe da lógica da lei), como parecem resolver-se no divórcio. O divórcio é anti-criativo porque fecha a porta à tentativa de uma vida conjugal criativa.
Para mencionar um outro livro de auto-ajuda norte-americano, mas este voltado para o fortalecimento do casamento, é preciso ver, com realismo, que “a principal razão de fracasso de casamentos em proporções alarmantes é o fato de o conflito ser mal administrado” [7] . Ou, em outras palavras, todo o relacionamento experimenta atritos e conflitos, que devem ser encarados como oportunidades para uma luta corajosa em busca de novas coerências, da unidade, da felicidade, do crescimento pessoal [8] .
Dissociar a criatividade da luta é tirar da criatividade uma das suas mais belas características, iluminada por Carlos Drummond de modo dramático no poema O lutador, com os conhecidos versos: “Lutar com palavras / é a luta mais vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã.”
A luta é a arte da busca renovada. Como diz Adam Philips, num livro um tanto ou quanto cínico, “viver em casal é uma arte performática.” [9] . A luta do artista é a de recomeçar o jogo a toda hora, a de colocar-se ele mesmo em jogo mais uma vez, a de não regatear, a de não se poupar, a de sacrificar noites de sono, a de renunciar a momentos mais “divertidos”. E é com esse espírito lúdico-lutador que um casal cria um casamento criativo. Aproveitando os próprios tropeços para aperfeiçoar movimentos inesperados. Improvisando e aprendendo no ato do próprio improviso. Renunciando à auto-afirmação para afirmar o nós, como no inesquecível poema Casamento, de Adélia Prado:
            Há mulheres que dizem:            Meu marido, se quiser pescar, pesque,            mas que limpe os peixes.            Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,            ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.            É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,            de vez em quando os cotovelos se esbarram,            ele fala coisas como ``este foi difícil''            ``prateou no ar dando rabanadas''            e faz o gesto com a mão.            O silêncio de quando nos vimos a primeira vez            atravessa a cozinha como um rio profundo.            Por fim, os peixes na travessa,            vamos dormir.            Coisas prateadas espocam:
            somos noivo e noiva. [10]
O casamento como performance. A vida criativa como performance. A linguagem como performance.
A linguagem criativa cria unidade. As palavras de gratidão, por exemplo, são uma atitude produtora de realidades amáveis. A gratidão assegura um relacionamento, cria vínculos, incentiva uma visão generosa da realidade. Ob-ligatus, em latim, de onde provém o nosso “obrigado”, é exatamente isso: “estou ligado a você pelo favor que você me fez, pela alegria que você me deu, pela ajuda desinteressada que você me prestou, pelos momentos de prazer que compartilhamos, pelo seu gesto de carinho.”
A gratidão não é, a rigor, compulsória. Podemos ser beneficiados e não manifestar a gratidão. Talvez o outro não tenha feito mais do que a sua obrigação... O episódio evangélico em que Cristo, após curar dez leprosos, só recebe de um deles o ato da gratidão (cf. Lc 17, 11-18), demonstra, digamos assim, um “dado estatístico”: somente 10% das pessoas vive realmente a gratidão. Os outros nove leprosos ficaram curados e possivelmente pensaram que Deus cumpriu seu dever de Deus, sendo misericordioso com eles. Mas o que retornou para agradecer vinculou-se àquele que o curou, e, criando com ele unidade, criou harmonia, gerou alegria, descobriu fonte de novas “curas”.
A criatividade está marcada pela aventura. A atitude de “desistir do jogo”, ou da “luta”, nasce de um orgulhoso perfeccionismo que não condiz com atitudes criativas. O orgulho inibe a capacidade criativa, a capacidade de recriar caminhos: “Qualquer bom músico de jazz possui inúmeros truques de que pode se servir quando se vê num beco sem saída. Mas para improvisar você precisa abandonar esses truques, entrar no vazio e aceitar riscos, até mesmo o de dar com a cara no chão de vez em quando. Na verdade, o que o público mais adora é nos ver cair. Porque então pode ver como conseguimos nos levantar e ir em frente.” [11]
A aventura de encontrar saídas originais, para continuar tocando jazz.
A fidelidade criativa, no casamento, na amizade, na ação profissional, na vida, enfim, possui traços incompatíveis com o orgulho, a vingança, a mágoa, a indiferença ou mesmo o alívio. A criatividade, impregnada de humildade, a humildade saudável de quem se recusa a dominar, a manipular, não pode ser usada, e por isso nunca envelhece.
Recria-se.


[1] A edição brasileira é de 1999, pela Madras Editora (SP). Só nos EUA vendeu mais de 3 milhões de exemplares.
[2] A coragem de criar, 5a ed., Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1982, pág. 11.
[3] Pág. 193.
[4] Fayga Ostrower. Criatividade e processos de criação, 7a edição, Petrópolis, Edit.Vozes, 1987, pág. 9.
[5] Estética de la creatividad. Barcelona, PPU, 1987, pág. 195.
[7] Howard Markman, Scott Stanley e Susan L. Blumberg. Como fortalecer seu casamento. Rio de Janeiro, Campus, 1996, pág. 18.
[8] Na realidade, o livro, em inglês, intitula-se Fighting for your marriage.
[9] Monogamia. São Paulo, Cia. das Letras, 1996, pág. 5.
[10] Poesia reunida. 3a ed., São Paulo, Siciliano, 1991, pág. 252.
[11] Stephen Nachmanovitch. Ser criativo – o poder da improvisação na vida e na arte. São Paulo, Summus, 1993, pág. 31.

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