domingo, fevereiro 6


O DIONISÍACO NA PERSONAGEM DEAN MORIARTY EM ON THE ROAD, DE JACK KEROUAC

Nelson Alexandre
                                

1. GERAÇÃO BEAT? POR ZEUS, QUE LIRA IMPROVISADA É ESSA?

A Geração Beatnik foi um dos mais controversos movimentos que o século XX viu e ouviu, e veio ao mundo pelas mãos de seu principal avatar, o escritor norte-americano de origem franco-canadense, Jack Kerouac (1922 -1969). Mas é importante salientar que a prosa espontânea, elemento que funcionava como espinha dorsal para tal movimento, já gestava na felpuda barba branca do poeta também norte-americano Walt Whitman, considerado o primeiro dos beatniks.
Sua obra Folhas das Folhas da Relva (que passaria praticamente toda a sua vida escrevendo e reescrevendo) já remetia metaforicamente a condição subterrânea que esse tipo de literatura viria a desencadear e expor ao restante do cânone estabelecido e já consagrado por uma grande fatia do público e da crítica.
Folhas das Folhas da Relva nos dá uma visão de que existe uma outra linha coletiva abaixo das folhagens da relva, que já por si mesma, está muito mais próxima do chão, do solo empoeirado e pedregoso das artes, em especial, a linha nem sempre racional e metrificada da poesia que não obedecia às formas fixas.
Tomando essa linha de raciocínio, o movimento Beatnik ou Beat, espelhou-se não só nessa concepção de arte “maldita”, fadada a pequenos espaços escuros e enfumaçados por onde seus protagonistas e admiradores povoavam carregados de um individualismo radical que inconscientemente ir-se-ia tomando forma de coletividade, de bando, de horda, principalmente por minorias que não podiam desempenhar suas manifestações no âmbito artístico, intelectual, moral e sexual, pois não compartilhavam da mesma opinião com a sociedade vigente, mas também, por uma necessidade de incorporar uma filosofia de vida, que essa sociedade vigente e já citada, queria pisar com um coturno pesado, pronto a destinar ao limbo as pequenas “Dramatis Personae” (Bivar, 2004) que povoavam essa “grama” indesejada e amoral.
Podemos destacar outra obra que serviu de incentivo e semente para que essa trupe de novos poetas e escritores tomasse como modelo para a criação de suas respectivas obras. Memórias do Subsolo, de Fiódor Dostoéviski, era sempre citada por seus idealizadores como um marco da inconformidade individual diante de um mundo frio e racional. Segundo Soares (2008), a obra é dividida em duas partes distintas, e seu criador utiliza um personagem-narrador que narra suas desventuras na primeira pessoa do singular, através de suas reminiscências e auto-análise, além disso, há uma diferença de linguagem nessas duas partes distintas, mais explícita na segunda parte, com a utilização de elementos informais como: linguagem popular, informal falada, palavras depreciativas, diminutivos, aumentativos, frases feitas e marcadores discursivos conversacionais.
 Naquela época eu tinha apenas vinte e quatro anos. Já então minha vida era sombria e desordenada, eu era solitário como um bicho do mato. Não tinha amizades, até mesmo evitava falar com as pessoas, e cada vez me enfurnava mais no meu canto. Durante o trabalho na repartição, procurava inclusive não olhar para ninguém e percebia nitidamente que meus colegas não só me consideravam excêntrico como também - assim me parecia constantemente – olhavam-me com uma certa repulsa. (Dostoiévski, p.54)

Na obra de Jack Kerouac, esses elementos estarão mais presentes em On The Road, do que em sua primeira obra publicada, The Town And The City. Este romance, originalmente publicado em meados de março do ano de 1950, ainda tinha muitas “amarras” com o romance tradicional e sutilezas eufemismadas que, posteriormente, darão lugar ao som da urbe, ao palavreado dos guetos e variantes lingüísticas que nem sempre estarão de mãos entrelaçadas com a norma culta de sua língua original de criação.
Destacamos até aqui um dos nomes principais dessa geração de anjos caídos dos altos arranha-céus nova-iorquinos, juntamente com dois expoentes da literatura universal, que serviram de espelhamento para a futura produção desse grupo. Porém, a geração beat não ficará estancada apenas com o nome de Kerouac, antes mesmo de o autor utilizar a palavra beat em sua obra, um vagabundo viciado chamado Herbert Huncke que perambulava pela Times Square com uma pilha de livros debaixo da axila e em constante viagem de um entorpecente denominado benzedrina, vivia repetindo para si e para os transeuntes: “Man, I’m beat”.
 Este primeiro sentido etimológico da palavra “beat” dava uma significação de “derrubado” “abatido” “tombado”, mas depois houve outras significações para a palavra. Beat também é o radical da palavra beatitude, que dava um enfoque místico e santificado ao movimento. Algo como anjos “sujos” (sem pejorativos, claro), santos franciscanos que compartilhavam desde idéias e drogas, até pensamentos e desejos realizados ou não. Beat também tinha ligação com a batida do som Be-bop, estilo musical do final dos anos 40 que destacava dois nomes de peso como Charlie Parker e Dizzy Gillespie.
Há de se destacar que após o lançamento do satélite russo Sputnik ao espaço, em 1957, ano também da publicação de On The Road, houve a junção do radical “beat” com o sufixo “nik”, formando a palavra “beatnik”, fazendo alusão de que os componentes dessa geração eram indivíduos que viviam fora desse mundo. É claro que por parte de algumas instituições de ensino e professores dos Estados Unidos, que torciam o nariz para essa nova tendência, aproveitaram para depreciar tal junção para criarem outra de explícito tom depreciativo como “madniks”.
Segundo Bivar (2004), o movimento Beat teve seu marco inicial no apartamento da primeira mulher de Kerouac, Edith Parker. Foi nesse apartamento que os outros nomes significativos do movimento se encontraram pela primeira vez. Eram eles: Allen Gisnberg (1926 – 1998) autor do poema Uivo, publicado originalmente em 1956 e William S. Burroughs (1914 – 1998), autor de uma obra que até os dias hoje é de difícil compreensão semântica, intitulada Almoço Nu.
No quesito publicação, The Town And The City, mesmo sendo o primeiro livro de um componente da geração beat a ser publicado, não ficou com o mérito de ser a primeira obra desse movimento a vir à luz do mundo. De acordo com Brinkley (2006), essa láurea não-acadêmica foi ofertada para uma figura que ficaria, mais tarde, em segundo plano, e que no ano de 1952, em 16 de novembro, para ser mais exato, foi o autor de um famoso ensaio “Esta é a Geração Beat”, publicado originalmente na The New York Times Magazine e que se chamava John Clellon Holmes.
O artigo ainda não daria status a John como autor da primeira obra beat publicada nos Estados Unidos, mas faria com que o país, e mais tarde o planeta, soubesse da existência desse pequeno grupo que “pipocara” no mundo das artes e que parecia mais um convidado indesejado pelo resto do setor acadêmico e cultural da terra do tio Sam. Holmes, que não era exatamente um beat, mas sim um simpatizante que vivia entre os principais nomes dessa geração, receberia US$ 20 mil de uma editora para escrever um livro sobre a Geração Beat e que nasceria com o título de “Go”. Mas a obra, depois de publicada, segundo Bivar (2004) era mais o trabalho de um observador distante do que de um participante introduzido no coração do movimento.
Mas o que realmente importa é que, obra de observador ou de participante, a história deu a Jonh Clellon Holmes o legado de precursor da primeira publicação da Geração Beat. Ambos, livro e ensaio fizeram com que o movimento tivesse um boom e ganhasse uma atenção maior por parte de admiradores e oposicionistas.
Kerouac sentiu-se injustiçado, pois achava que On The Road era a obra que merecia tais confetes nesse novo carnaval do mundo literário, mas mal sabia ele, que os deuses guardavam para o futuro algo que não ficaria apenas no espaço apertado e triste do seu coração. Ele viria a ser o ícone de toda uma geração órfã e rejeitada por aqueles que não queriam ver o status quo maculado. Como um enorme risco de ponta a ponta na lataria de um Hudson cheirando a conservadorismo.


2. NA ESTRADA DE ON THE ROAD: SINOPSE SOBRE O ROMANCE E CONTEXTUALIZAÇÃO DAS PERSONAGENS DEAN MORIARTY E SAL PARADISE

O enredo do romance enfoca a história de um jovem escritor, o protagonista Sal Paradise, de vinte e cinco anos de idade, que mora com a tia num pequeno apartamento do outro lado da ponte da ilha de Manhatan. Paradise, que recentemente havia perdido a esposa, em conseqüência de uma súbita traição, começa a conhecer o estilo livre e espontâneo de escrita em algumas cartas de um jovem muito entusiasmado chamado Dean Moriarty, que mora na cidade de Denver, no Estado americano do Colorado, e que passara algum tempo num reformatório por ter roubado dezenas de carros por pura diversão. Roubava-os e os dirigia até que o tanque de combustível ficasse perto do final, para depois “devolvê-los” para seus respectivos donos, abandonando-os perto de onde ele já os havia pegado.
As cartas falavam a respeito de como ele estava entusiasmado com a leitura que vinha fazendo em relação ao escritos de Nietzsche. Paradise, junto com seus amigos Chad King e Carlo Marx, também entusiasmados com o estilo singular do jovem Dean Moriarty, ficam sabendo de que ele havia saído do reformatório e que viria para Nova Iorque encontrar-se com seus heróis, especialmente, Sal Paradise, que Dean acredita ser o novo amigo que o transformará em um escritor.

 (...) No bar eu disse: “Porra, cara, sei muito bem que você não me procurou só porque tá a fim de virar escritor e, afinal de contas, o que é que eu posso te dizer sobre isso a não ser que você tem que mergulhar nessa onda com a mesma energia com que um viciado se droga?” (p. 20).

A partir desse encontro, a vida de Paradise cai literalmente na estrada. Serão várias viagens cortando os Estados Unidos da costa leste a oeste, com e sem Dean, e fazendo várias paradas nessa cruzada pelo país, utilizando todas as formas de transporte possíveis: vagões de trem de carga, caminhões, ônibus, carros roubados e caronas em carros velhos e novos. Em algumas dessas paradas, a personagem se vê diante de profundas reflexões a partir de observações de momentos congelados que aos olhos comuns poderiam passar como banais.

Os pisos das estações rodoviárias são exatamente iguais pelo país inteiro, sempre recobertos de baganas e catarros, e eles provocam uma melancolia profunda que só mesmo as rodoviárias poderiam possuir. (p.54).


O romance aborda o senso de individualismo dessas personagens, mesclado a um pensamento de irmandade por afinidade ao estilo livre de vida, afinidade com o gosto musical, e a forte relação de ruptura com um modelo de vida tradicional que por parte dos Beats era enfadonha, desvinculada de reflexões que não fossem de apego ao material, que rejeitavam o afloramento subterrâneo de uma poesia “automatista” e verborrágica e que contribuía para a subsistência cotidiana que as pequenas personagens secundárias da vida interpretam todos os dias, em contraponto às pessoas que levam uma vida perigosamente autêntica num mundo cada vez mais competitivo e que doutrina o ser desde os primeiros contatos com a realidade que encaramos para podermos sobreviver todos os dias, todas as semanas, todos os meses e anos de uma existência pautada em um modelo fixo de crença, comportamento e opinião.
As personagens caminham numa estrada que tem uma placa de indicação que remete aos protagonistas encontrarem a essência da vida autêntica, formando o clã excluído que está se constituindo como uma sociedade alternativa no seio de uma sociedade tradicional e formal.

Mas nesta época eles dançavam pelas ruas como piões frenéticos e eu me arrastava na mesma direção como tenho feito toda a minha vida, sempre rastejando atrás de pessoas que me interessam, porque, para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo, aqueles que nunca bocejam e falam chavões, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício explodindo como constelações em cujo centro fervilhante pop pode-se ver um brilho azul e intenso até que todos caiam no “aaaaaaah!” (pág. 22).

O estilo e a velocidade na criação das obras por Kerouac, que por muitas vezes eram movidos à bebida, cigarros e drogas, e embalados pelo som fervilhante do Jazz e do Be-Bop, tinham uma ligação muito forte com a percepção auditiva dessas tendências musicais e do automatismo dos escritores e pintores surrealistas.
Kerouac mantinha-se como o saxofonista na sua base constante de improviso metafórico. Conforme salienta Bueno (1997), o mais irônico é que, na verdade, Kerouac desenvolveu esse estilo – o estilo beat por excelência: laudatório, verborrágico, impressionista, vertiginoso, incontido, “espontâneo”, repleto de sonoridade, de gíria, de coloquialismo e de aliterações – a partir das cartas que recebeu de Neal Cassady, em quem se espelhou para poder criar a personagem Dean Moriarty.

Os rapazes no Loop seguiam soprando, mas com um ar fatigado porque o bop estava em algum ponto entre o período ornitológico de Charlie Parker e a nova era que se iniciaria com Miles Davis. E enquanto eu sentava ali ouvindo aquele som noturno que o bop viera representar para todos nós, pensei nos meus amigos espalhados de um canto a outro da nação e em como todos eles viviam frenéticos e velozes dentro dos limites de um único e imenso quintal. (pág.29).

O enredo de On The Road baseia-se não só em aventuras pelos submundos da música, da prostituição, das drogas, do prazer efêmero e da inquietude que fazia com que os hormônios e neurônios dos jovens estivessem borbulhando como as febris notas do Be-bop enlouquecido numa atmosfera coberta de luz néon e anúncios luminosos de cerveja em noites regadas à conversas sobre filósofos e escritores que embasavam suas ações reais e criações ficcionais, mas também, sobre os elementos imagísticos e poéticos do interior dos pequenos centros fora das megalópoles como Nova Iorque e São Francisco.

Port Allen – onde o rio é uma chuva de rosas sob uma escuridão nebulosa e insignificante, onde entramos numa estrada sinuosa sob o fogo amarelado, onde, de repente, numa volta, vislumbramos o visco vulto volátil escoando suas águas sob a ponte e cruzamos mais uma vez a eternidade.  (pág. 29).



3. “DEANONISÍACO” HIBRIDISMO QUE REMETE A UM ENCONTRO DA TRADICÃO GRECO-ROMANA E A CONTRACULTURA BEATNIK DO SÉCULO XX

Jack Kerouac afirmou que a Geração Beat era um movimento Dionisíaco, a partir do momento em que teve consciência do sentido genealógico que essa afirmação criaria para os componentes do movimento.
 Quando se manifestou dessa maneira, o escritor plantou uma semente de inocência em seu coração, e o suco que escorria dessa videira entrelaçada em suas coronárias fez com que seus seguidores ficassem, como afirma Brandão(1997), num pé de parentesco com os Sátiros e as Ninfas, dançando vertiginosamente ao som dos címbalos, tendo ao invés de Dioniso no centro, Dean Moriarty, e no lugar dos instrumentos utilizados pelo cortejo de Dioniso, a Geração Beat utilizaria bateria, contrabaixo, saxofones, trompetes e pianos com teclados alucinantes e notas que seguiam dentro de um improviso de tom único na base, e polissêmico nas significações que irradiaria a partir desse núcleo sonoro que penetraria a mãe Terra, despertando os ouvidos dos habitantes do Hades.

O piano lançou um acorde. Sua boca estremeceu, ele nos encarou, Dean e a mim, com uma expressão que parecia querer dizer: Ei rapazes, o que estamos fazendo nesse mundo de merda? – e então chegou ao fim da canção, mas para isso teve que fazer umas preparações intrincadas, um final elaborado durante o qual poder-se-ia enviar todas as mensagens jamais sonhadas, para Garcia,  umas doze vezes em torno do mundo, mas que diferença isso fazia para todos os outros? Porque no fim das contas ali estávamos nós, transando com o inferno e com a amargura de nossa própria e exausta vida beat nessas horrorosas ruas do homem. (pág. 246).

Outra relação entre o deus grego e a personagem norte-americana Dean Moriarty permeiam o mito do surgimento de Dioniso. Conforme afirma Commelan, Dioniso era filho de Zeus e Sêmele, princesa tebana, filha do rei Cadmo. Como acontece com todas as amantes de Zeus, Hera enciumada se disfarça de sua ama, aconselhando Sêmele a pedir que Zeus aparecesse na sua forma divina.
A moça assim o faz e Zeus não pode negar esse pedido. Ao aparecer em sua forma divina, o deus emitiu raios e relâmpagos, incendiando o palácio e a pobre moça. Mesmo Sêmele estando em chamas, Zeus conseguiu retirar de seu ventre o bebê, acabando por gerá-lo em sua própria coxa. Ao longo de toda a juventude de Dioniso, teve que ser protegido da ira de Hera, ficando, também, afastado do Olimpo.
A personagem Dean Moriarty, segundo o narrador-protagonista Sal Paradise, também se vê órfão de mãe e a figura paterna é uma espécie de personificação dos bares de sinuca de Denver, que espera pelos trocados que o adolescente Moriarty arrecada com outros fregueses para que o velho Moriarty, o pai, possa beber a sua próxima garrafa de vinho. Além do fato de Dean não pertencer a qualquer árvore genealógica com algum direito a honrarias régias. Ambos, Dean e Paradise, são pessoas errantes em uma América que ainda não conhece num todo, seus próprios mitos e lendas. Dioniso, por influência da vingativa Hera, também é fadado a uma existência de “porto em porto”, quase que enlouquecido. Deus do vigor e da agricultura, do torpor do vinho e lascívia entre as mulheres. Erupção de um vulcão caucasiano, nada mais propondo, a não ser, liberar a alegria junto a seu cortejo e o prazer da música e da dança.
Assim também é Dean, não só para Kerouac, mas para todos os principais nomes da Geração Beat. Ícone longínquo. Preso a um plano de originalidade autoral. Peça apolítica como Dioniso. E defensor da política da libertação. Arte focada em si, que irradia alegria para seus convivas, como os primeiros raios de sol sobre a videira. 
Príapo da costa leste a costa oeste. Diferente apenas por não ser imortal. Sua imortalidade descende das linhas verborrágicas desse romance empoeirado, que cheira a pores de sol e poentes nos desertos da solidão humana condicionada a uma espécie de semidescendência da imortalidade cultuada por seus seguidores e admiradores. Ignorado por muitos. Lembrado por poucos que valem muito.

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