sexta-feira, junho 25


 A NARRATIVA DE FICÇÃO

Ricardo Sérgio de Menezes Nunes*
"A narrativa está presente em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há em parte alguma, povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas, e frequentemente estas narrativas são apreciadas em comum por homens de cultura diferente, e mesmo oposta:- a narrativa ridiculariza a boa e a má literatura: internacional, trans-histórica, transcultural, a narrativa está aí, como a vida." (Barthes, 1971, p. 19-20)
Narrar é expor, por meio da fala ou da escrita, um acontecimento ou uma sucessão de acontecimentos, mais ou menos encadeados, reais ou imaginários. Assim temos a narrativa poética, a narrativa objetiva (acontecimentos reais) e a narrativa de ficção (acontecimentos imaginários). No caso da narrativa de ficção, usamos o termo "narração", como designativo da prosa de ficção. Neste caso, a narração é uma invenção, uma criação humana e, como tal, exige arte, técnica, e imaginação. Enfim, a narração consiste no relato de acontecimentos ou fatos que envolvem: um narrador que a conte, personagens que vivenciem os fatos narrados, um espaço em que se ambiente a história, uma trama (conflitos), ação e o transcorrer do tempo em que a ação se desenvolve.
A Mentira Artística

O filho chega tarde a casa e o pai corre severo para ele:

— O que houve?

O filho expõe (narra) um conjunto de fatos, de acontecimentos que lhe servirão de desculpas. O objetivo dessa narrativa é o convencimento do pai. De modo que o filho procura os acontecimentos que motivaram o atraso (narrativa objetiva), ou os inventa (narrativa ficcional). Daí, não é sem razão dizer-se que: "o primeiro filho mentiroso descobriu a arte da narrativa", que agrada mais e convence mais porque vai além dos fatos, além da realidade. "A mentira artística chama-se ficção".

A Narrativa de Ficção ou Narração

A narrativa de ficção é construída, elaborada de modo a emocionar, impressionar as pessoas como se fossem reais. Quando você lê um romance, novela ou conto, por exemplo, sabe que aquela história foi inventada por alguém e está sendo vivida de mentira por personagens fictícios. No entanto, você chora ou ri, torce pelo herói, prende a respiração no momento de suspense, fica satisfeito quando tudo acaba bem. A história foi narrada de modo a ser vivida por você. Suas emoções não deixam de existir só porque aquilo é ficção, é invenção. No "mundo da ficção" a realidade interna é mais ampla que a realidade externa, concreta, que conhecemos. Através da ficção podemos, por exemplo, nos transportar para um mundo futuro, no qual certas situações que hoje podem nos parecer absurdas, são perfeitamente aceitas como verdadeiras.

Os contos de fadas, as fábulas, os desenhos animados, as narrativas fantásticas, em que tudo pode acontecer, também, nos remetem a outra realidade, bem mais ampla da que vivemos. Nestes casos, os textos narrativos, apresentam uma lógica interna que acabamos aceitando como verdade. É o que alguns teóricos chamam de “suspensão voluntária da descrença”, para exemplificar essa suspensão, cito dois exemplos:

Em a Metamorfose, o tcheco Franz Kafka inicia a narrativa com o personagem Gregor Samsa transformado em um inseto (metáfora da condição humana em um mundo adverso, desumano):

“Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa viu-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça, e ao erguer um pouco sua cabeça viu o seu ventre marrom, abaulado divididos em saliências arqueadas (...).”

Já Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, dá voz a um defunto que narra logo no primeiro capítulo o seu óbito:

"Algum tempo hesitei se deveria começar estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor [...]."

Para o leitor prosseguir na leitura dessas narrativas é necessário que ele suspenda temporária e voluntariamente a sua descrença e aceite, como um fato da realidade, uma personagem transformada em um inseto horroroso e um defunto que resolve contar suas memórias.

Toda narrativa de ficção transmite uma determinada visão da vida. É por essa razão que as narrativas de ficção ou a ficção nos tocam tão de perto.


 FICCIONISTA NÃO É O NARRADOR DA FICÇÃO

É comum, numa narrativa de ficção, o leitor confundir o ficcionista, autor da narrativa, com o narrador da história.

Autor e narrador são seres diferentes. O autor (contista, novelista, romancista) é  uma pessoa de carne e osso, que se utiliza de uma voz, ou seja, de uma personagem fictícia – o narrador - para nos contar aquilo que ele cria, imagina, inventa. Portanto, o narrador só existe no texto. O autor pode, então, ser entendido como a pessoa que se oculta atrás de uns narradores para relatar de uma determinada maneira, determinados fatos. Assim sendo, cada autor cria um narrador diferente para cada obra.

Essa diferença nem sempre é percebida porque, não raro, autores e narradores se utilizam das mesmas categorias pronominais, nas narrativas em primeira pessoa, para se identificarem: "Eu". Da mesma maneira que dizemos: Eu tinha 12 anos quando...

No entanto, mesmo quando uma história é narrada na primeira pessoa, não podemos dizer que é o autor que fala. Pois, no mais das vezes, o escritor pode criar narradores completamente avessos a sua maneira de ser e de pensar. Mais ainda, pode colocá-los em outro espaço e num outro tempo, em tudo diferente do seu tempo e espaço.

Tomemos como exemplo o personagem-narrador Brás Cubas (Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis) que, apesar de estar morto, narra suas memórias:

"Algum tempo hesitei se deveria começar estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor [...]."

Portanto, não há nenhuma relação entre Machado de Assis e Brás Cuba. Daí, podemos concluir claramente, que Brás Cubas (narrador) é pura obra de ficção. No romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, o narrador Honório "vê" o mundo à sua volta através dos valores de um capitalismo primitivo; ponto de vista totalmente contrário ao de Graciliano.


A VEROSSIMILHANÇA

"Vero" significa verdadeiro; "simil", semelhante; ou seja, o que é verossímil é semelhante ao que é verdadeiro. No caso da obra literária, verossimilhança quer dizer semelhante à vida, a realidade.
Verossimilhança é a impressão da verdade que a ficção consegue provocar no leitor, graças à lógica interna da história. A verossimilhança é, pois, a essência do texto de ficção.
Os acontecimentos de uma história não precisam ser verdadeiros, no sentido de corresponderem exatamente aos acontecimentos que se passam no universo exterior ao texto, mas devem ser verossímeis, semelhantes a eles.
A lógica interna da história ou coerência narrativa determina que os fatos da história devam suceder-se temporalmente, isto é, uma causa (fato), desencadeia uma conseqüência (novos fatos). Essa sucessão não pode estar em contradição, sob pena de tornar a narração inverossímil. Se uma determinada personagem é, no inicio da narrativa, caracterizada como uma pessoa que não suporta animais; não podemos dizer em seguida que ela criava em casa cachorros e passarinhos, sem apresentar uma justificativa convincente.
Levando em conta o que foi exposto, podemos dizer que a ficção cientifica e a narrativa fantástica é inverossímil, isto é, não é semelhante ao que é verdadeiro. Porém, ser inverossímil não as desqualifica do universo literário. Os acontecimentos da narrativa podem ser absurdos, ilógicos, sem contato com a realidade, mas se houver, no universo da história, uma coerência interna, um ambiente que justifique a ausência de lógica, a obra tem coerência interna, vai ser verossímil internamente. E é, por isso, que acabamos aceitando-a como verdadeira. Embora, seja inverossímil em confronto com a realidade.

A PERSONAGEM NA NARRATIVA


O termo personagem vem do Latim, persona(m), cujo significado é, máscara de ator de teatro. Em português, pode ser o personagem ou a personagem. Este último, talvez por causa da origem do termo em latim [persona]. No masculino, há quem diga ser devido à ausência de mulheres no teatro antigo; todos os personagens eram masculinos.
As personagens são arquitetadas pela fantasia do prosador e atuam no interior da narrativa literária; têm por função simular pessoas, comportamentos e sentimentos reais. Por isso, são construídas à imagem e semelhança dos seres humanos. Se bem construídas, nelas, teremos a impressão de pessoas vivendo situações e dilemas semelhantes aos nossos.
A personagem só existe na história se dela participa, ou seja, se age ou fala. Se uma determinada personagem é apenas mencionada na história por outras personagens, mas não participa direta ou indiretamente das ações, não será considerada uma personagem.
1. FUNÇÕES DAS PERSONAGENS
Quanto à função que desempenham na narrativa, as personagens podem ser:
a) Protagonista (do Grego, protagonistés) - É a personagem principal em torno do qual se constrói toda a trama. O protagonista pode ser caracterizado como herói ou anti-herói. Em nossa literatura é muito frequente o anti-herói como protagonista. Macunaíma é um exemplo do herói sem nenhum caráter, ou seja, o anti-herói.
b) Antagonista (do Grego, antagonistés) - é a personagem que cria o clima de tensão, opondo-se ao protagonista. Ao construir uma narrativa, nunca despreze o antagonista; o sucesso de uma narrativa está diretamente ligado à perfeita caracterização desse personagem. Que digam as novelas de televisão!
• Protagonista e antagonista são caracterizados, na linguagem popular como "mocinho e bandido". Em outros termos, herói e vilão.
c) Personagens Secundárias e Figurantes - personagens sem grande importância na narrativa. As secundárias participam na ação, no entanto, não desempenham papéis decisivos. Os figurantes não têm qualquer participação no desenrolar da ação, cabendo-lhe apenas ajudar a compor um ambiente ou espaço social.
2. CARACTERIZAÇÃO DAS PERSONAGENS
a) Indivíduos - são personagens que possuem características pessoais marcantes, que acentuam a sua individualidade. Em Dom Casmurro (Machado de Assis), Capitu é uma personagem indivíduo. Observe:
“Na verdade, Capitu ia crescendo às carreias, as formas arredondavam-se e avigoravam-se com grande intensidade; moralmente a mesma coisa. Era mulher por dentro e por fora, mulher à esquerda e à direita, mulher por todos os lados, e desde os pés a cabeça. (...); os olhos pareciam ter outra reflexão, e a boca outro império.”
b) Caricaturais - são personagens cujos traços de personalidade ou padrões de comportamento são propositalmente acentuados (às vezes beirando o ridículo) em função do cômico ou da sátira. São personagens muito comuns, principalmente, em novelas de televisão. Manuel Antônio de Almeida, em Memórias de um Sargento da Milícia, nos descreve uma personagem caricatural:
“Era a comadre uma mulher gorda, bonachona, ingênua ou tola até certo ponto, [...] todos a conheciam por muito beata e pela mais desabrida papa-missas da cidade. Era a folinha mais exata de todas as festas religiosas que aqui se faziam; sabia de cor os dias em que se dizia a missa em tal ou tal igreja, como a hora e até o nome do vigário; era pontual à ladainha, ao terço, à novena; não lhe escapava via-sacra, procissão, nem sermão."
c) Típica ou Tipos – são personagens identificados pela profissão, pelo comportamento, pela classe social, enfim, por um traço distintivo comum a todos os indivíduos duma categoria. Personagem Tipo seria o jornalista, o estudante, a dona-de-casa, a solteirona etc. É o caso, por exemplo, da maioria das personagens de Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, como o Barbeiro, a Parteira, o Major, os Ciganos, etc. O mesmo vale para a maioria dos personagens de Gil Vicente.
3. EVOLUÇÃO DAS PERSONAGENS
Quanto à evolução, dentro da narrativa, as personagens podem ser:
a) Planas ou Estacionárias – são personagens construídas em redor de uma única qualidade ou defeito. Por isso, não tem profundidade psicológica, e não alteram seu comportamento no decorrer da narrativa. São personagens estáticas, definidas em poucas palavras, por um traço, por um elemento característico básico, que as acompanha durante toda a história. É o irônico que está sempre fazendo ironias, o chato que só sabe ser chato, ou seja, são personagens que não apresentam contradições: são sempre boas ou más; corajosas ou mentirosas; malandras ou trabalhadoras. Como exemplo, podemos citar Iracema, do romance Iracema, de José de Alencar.
• As personagens planas, normalmente, são caracterizadas como tipo ou caricatural.
b) Redondas, Esféricas ou Evolutivas – são personagens complexas; definidas por vários traços diferentes, cheias de contradições; apresentam comportamentos imprevisíveis, enigmáticos, que vão sendo definidos no decorrer da narrativa, evoluindo e, muitas vezes, surpreendendo o leitor. Ora são covardes, ora corajosas; ora possuem virtudes, ora defeitos; enfim, expressam a verdadeira natureza humana. A personagem-protagonista de João do Santo Cristo do texto Faroeste Caboclo, é evolutiva, pois é uma mistura de santo e bandido.
[Ricardo Sérgio de Menezes Nunes, 62,Professor Aposentado-Campo Grande : MS : Brasil]
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